O Último Gesto da Chuva
O cheiro de café fresco pairava denso no ar da cozinha da Dona Vera, misturado ao aroma úmido da terra que a garoa fina trazia do quintal. Lá fora, as mangueiras choravam suas folhas verdes, e o céu cinza prometia mais chuva. De um lado da mesa de fórmica amarelada, Dona Vera, com as mãos enrugadas repousando sobre o guardanapo, encarava o celular. Do outro, o inspetor Silva, com a camisa do uniforme ligeiramente amassada e um olhar cansado, aguardava. O silêncio era quebrado apenas pelo tic-tac preguiçoso do relógio de parede.
“Foi essa mensagem, inspetor. Assim que eu… que eu a encontrei”, a voz de Dona Vera embargou, e ela buscou o celular com um tremor nas mãos. A tela iluminou seu rosto marcado pela dor, projetando as poucas palavras sobre a madeira gasta:
“O Pássaro não canta mais. As Raízes são profundas.”
Silva franziu a testa. A vítima, Seu Elias, o vizinho de cima, conhecido por suas conversas animadas sobre a horta e seus pássaros canoros, havia sido encontrado sem vida em sua pequena sala, na cama. Uma morte, à primeira vista, natural. Um nó na garganta, talvez. Mas a mensagem. O que significava?
“Ele sempre falava dos passarinhos dele, inspetor”, Dona Vera explicou, a voz um fio. “Tinha um sabiá que ele dizia que era o mais bonito. E a horta dele… ah, ele cuidava daquelas raízes como se fossem filhos.”
Silva pegou o celular. A foto de perfil de Elias era antiga, ele sorrindo, os olhos azuis marejados de sol, um chapéu de palha na cabeça. Embaixo da foto, um lema: “A vida floresce onde o sol toca.”
“O sol não toca mais, então?”, Silva murmurou para si mesmo. Ele se levantou e foi até a janela. A chuva agora caía com mais força, lavando o asfalto da rua estreita, onde as poucas crianças que brincavam corriam para se abrigar. Olhou para o prédio de Elias, as janelas escuras, um silêncio opressivo emanando de cada uma delas.
“As raízes são profundas”, Silva repetiu, pensativo. Ele se lembrou da primeira vez que pisou naquele prédio. Cheirava a mofo e a poeira acumulada de anos, mas também a algo mais, um cheiro sutil de terra e de lavanda, que ele havia associado a Elias.
“Ele tinha algum inimigo, Dona Vera?”
Ela balançou a cabeça lentamente. “Elias? Não. Ele vivia de bem com a vida. Dava uma flor pro carteiro, emprestava uma ferramenta pra qualquer um. Às vezes eu achava que ele era até demais, sabe? Mas… inimigo, nunca.”
Silva voltou a olhar para a mensagem. “O Pássaro não canta mais.” Elias amava seus pássaros. Tinha a gaiola impecável na varanda, um borrifador de água sempre à mão. “As Raízes são profundas.” A horta. O que era tão profundo que poderia estar ligado à morte de um homem que amava a leveza do voo e o perfume da terra?
Ele pediu para Dona Vera permitir uma revista rápida no apartamento de Elias. Lá, tudo parecia em ordem. A cama desfeita, um livro aberto sobre a mesinha de cabeceira. Um romance histórico, sobre a colonização. Silva folheou algumas páginas. Nada que chamasse a atenção.
Voltou para a cozinha de Dona Vera. O café esfriava na xícara. Ele sentou-se novamente, a mente trabalhando nas peças soltas. A garoa havia cessado, e um raio de sol tímido começava a furar as nuvens.
“O Pássaro não canta mais”, ele repetiu, agora com uma convicção crescente. Não era sobre os pássaros literais. Era sobre algo que cantava, que trazia alegria, que era a essência de Elias. E o que poderia silenciar isso?
“As Raízes são profundas.” Elias se orgulhava de sua descendência, de suas origens. Falava de um avô que veio da Itália, um homem forte, que plantou a primeira semente de figo naquele terreno.
De repente, um lampejo. Silva lembrou-se de uma conversa com outro vizinho, sobre uma antiga disputa de terras na região, algo que havia acontecido há décadas, envolvendo a família de Elias e outra família poderosa, já desaparecida. Coisas velhas, esquecidas. Ou não.
Ele pegou seu bloco de notas. A mensagem, um quebra-cabeça. O que Elias, um homem de fé simples e amor pela natureza, estaria tentando dizer? Era um pedido de ajuda? Uma acusação velada? Ou apenas o último suspiro de um homem que, ao sentir a vida esvair, buscou nas metáforas que tanto amava uma forma de expressar o inexplicável?
Silva olhou novamente para o céu, onde o sol ganhava força. A chuva havia lavado o mundo lá fora, mas as mágoas e os segredos, como raízes profundas, pareciam resistir. E a mensagem enigmática de Elias, pairando no ar úmido da cozinha da Dona Vera, parecia um convite para desenterrar o que o tempo havia tentado enterrar. O canto do sabiá, ele percebeu, podia ter sido silenciado por muito mais do que a natureza.
Por: João Pedro Silveira

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