A Sombra do Velho Moinho

A Sombra do Velho Moinho

O cheiro de café requentado, um velho amigo do peito de Arthur, pairava no ar da cozinha. O sol da manhã, tímido, entrava pela janela empoeirada, desenhando listras sobre o balcão arranhado onde repousavam suas mãos, agora mais finas e sem o vigor de antes. Trinta anos de delegacia, de suor, de sangue, de noites mal dormidas em prédios cinzentos, e agora o silêncio. Um silêncio que ele se esforçava para preencher com o burburinho da TV desligada e o tic-tac irritante do relógio na parede.

A aposentadoria, vendida como descanso, era um monstro de três cabeças: a saudade do trabalho, a solidão incômoda e a sensação de estar obsoleto. Foi numa dessas tardes de tédio, folheando um jornal local com a mesma avidez de quem busca migalhas, que algo acendeu uma faísca. Uma nota discreta, quase apagada na seção de obituários, falava de dona Elvira, 68 anos, desaparecida há duas semanas. Nada de incomum em uma cidadezinha do interior onde a população envelhecia em ritmos lentos. Mas Arthur leu os detalhes – a casa cercada por mangueiras, o quintal gramado onde ela gostava de regar as samambaias – e sentiu um arrepio.

Lembrava-se de Dona Elvira. Não pessoalmente, mas de um caso antigo, um roubo na residência dela, há uns dez anos. Uma mulher reservada, educada. E agora, desaparecida. A polícia, com sua burocracia e escassez de recursos, provavelmente a tratava como mais uma idosa que se perdeu, ou que foi visitar algum parente sem avisar. Pura inércia, Arthur pensou.

Mas não parou por aí. A curiosidade, esse vício que se recusava a ser extinto, o fez cavar. Online, naqueles cantos esquecidos da internet onde notícias antigas ainda respiravam, Arthur encontrou outros nomes. Uma moça, Mariana, estudante universitária, sumiu há quatro meses. Vizinhos a descreveram como sonhadora, sempre com um livro na mão, vista pela última vez perto do rio que cortava a cidade. E antes dela, um homem, Seu Manoel, o zelador da escola municipal, dado como desaparecido há um ano.

Nenhum parentesco, nenhuma ligação aparente. Para a polícia, eram casos isolados, fichas frias, arquivadas. Mas para Arthur, um padrão começava a se desenhar, sutil como a névoa que subia do rio nas manhãs frias. O rio. Dona Elvira, Mariana, Seu Manoel. Todos, de alguma forma, ligados à sua margem.

Arthur pegou o carro velho, um Gol azul desbotado que exalava o cheiro de couro ressecado e de muitas viagens, e partiu para a cidade. O ar rural, com o cheiro de terra molhada e mato queimado, invadiu o carro quando ele desceu as janelas. Era um aroma que ele conhecia bem, um contraste gritante com a poluição da capital onde morava.

Ele começou pela casa de Dona Elvira. Um portão de ferro enferrujado, um jardim florido mas descuidado, refletindo a ausência. A casa estava trancada, mas pela janela da cozinha, ele viu os pratos na pia, um livro aberto sobre a mesa. Como se ela tivesse saído por um instante e nunca mais voltado. O desespero silencioso daquelas paredes era palpável.

Conversou com os vizinhos. Falaram de Dona Elvira com carinho e preocupação, mas ninguém viu nada de diferente. Uma mulher tranquila, que gostava de seus gatos e de seu chá das cinco. Ninguém notou carros estranhos, pessoas suspeitas. O esquecimento era tão cruel quanto a própria ausência.

Em seguida, a universidade onde Mariana estudava. Seus colegas, com olhares ainda carregados de incerteza, contaram sobre sua paixão por poesia, suas longas caminhadas pela beira do rio. “Ela dizia que o rio falava com ela”, disse uma colega, a voz embargada. Arthur ouvia, anotava em seu velho caderno surrado, cada detalhe, cada palavra, como peças de um quebra-cabeça que teimava em se formar de maneira distorcida.

Seu Manoel, o zelador, era lembrado como um homem simples, trabalhador, que vivia sozinho. Nada de peculiar em sua rotina, apenas o silêncio da casa modesta e o cheiro de desinfetante que ele carregava consigo.

Dias se arrastaram. Arthur visitou as margens do rio, sentiu a brisa fria que trazia o som suave da água correndo. Viu as pegadas de um passado que teimava em se apagar, a grama pisoteada por caminhantes despreocupados. Sentiu a melancolia que impregnava aquele lugar, a vastidão da natureza que parecia engolir as pequenas tragédias humanas.

Ele voltou ao jornal, à seção de desaparecidos. Havia outros. Uma lista de nomes, alguns mais antigos, outros mais recentes. Nenhuma conexão óbvia, nenhuma pista concreta. A polícia estava certa em sua lógica. Eram incidentes isolados. Mas a intuição de Arthur, forjada em anos de observação e empatia com as vítimas, gritava o contrário.

Uma tarde, sentado em um bar simples, comendo um pastel de feira e bebendo uma cerveja amarga, ele cruzou com um artigo sobre um velho moinho abandonado, um pouco afastado da cidade, quase engolido pela vegetação. Um lugar histórico, mas esquecido. Uma lembrança. Ele se lembrava desse moinho de sua época de detetive, um lugar que raramente atraía a atenção, um fantasma de um tempo passado.

Arthur dirigiu até lá. A estrada de terra batida levantava nuvens de poeira, e o som do motor parecia um lamento solitário. O moinho se erguia contra o céu cinzento, suas pás imóveis como braços esqueléticos. Um ar de abandono e mistério pairava sobre o lugar. O mato alto escondia a estrutura, e o silêncio era profundo, apenas quebrado pelo canto distante de um pássaro.

Ele desceu do carro. O cheiro de mofo e terra úmida emanava do moinho. Um cheiro de segredos guardados. Arthur sentiu um frio na espinha que não vinha do vento. Era a sensação familiar de estar perto de algo que a lei, em sua visão fria e quantitativa, não conseguia enxergar. Havia algo ali. Algo que Dona Elvira, Mariana e Seu Manoel, de alguma forma, tocaram.

Ele deu a volta no moinho, o chão sob seus pés cedendo ligeiramente com o peso. A vegetação densa dificultava a passagem. Foi então que ele viu. Um pedaço de tecido, desbotado, preso em um arbusto espinhento. Um fio de cor vibrante, que mesmo apagado pelo tempo, parecia gritar. O mesmo tom de um lenço que ele lembrava de ver em uma foto antiga de Mariana, a estudante sonhadora.

Arthur parou. O corpo da velha delegacia ainda funcionava, um músculo esquecido que se reativava. Ele sabia que a polícia, focada em pistas materiais e em investigações formais, dificilmente se voltaria para um moinho abandonado, a não ser que houvesse um chamado explícito. E ele não tinha provas concretas, apenas um sentimento avassalador e um pedaço de tecido.

Mas ele sabia, com a certeza que a experiência lhe dera, que o padrão não era uma coincidência. Era um fio, tênue e perigoso, que ligava aqueles desaparecimentos. E ele, o detetive aposentado, agora era o guardião desse segredo. A sombra do velho moinho se estendia, longa e fria, e Arthur sabia que não poderia simplesmente ir embora. A busca, afinal, estava apenas começando. E ela o levaria para lugares que a polícia, absorta em seus procedimentos, jamais ousaria pisar. A pergunta pairava no ar, densa como a poeira do moinho: quem, ou o quê, estava na escuridão, à espreita? E quantos mais seriam engolidos pelo silêncio, antes que alguém finalmente visse a sombra?


Por: João Pedro Silveira

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