O Sussurro dos Segundos Quebrados

O Sussurro dos Segundos Quebrados

As mãos de Dona Helena, finas e calejadas como raízes de jabuticabeira, flutuavam sobre a bancada. Um microscópio, com seu olho gigante e frio, era a lente através da qual ela desvendava os segredos de minúsculas engrenagens e molas teimosas. A loja, um refúgio de luz amarelada e cheiro de óleo de máquina e pó acumulado, era a antessala de um tempo que se recusava a seguir em frente. Rua São João, com seu burburinho de vida apressada e carros que buzinavam com impaciência, parecia alheia à quietude sagrada de seu ofício.

No balcão empenado, o relógio de pêndulo de madeira escura, um presente de casamento dos pais de Dona Helena, ostentava um silêncio obstinado. Era o mais difícil. As peças, desgastadas pelo tempo e pela umidade traiçoeira dos verões em Paraty, contavam uma história de batidas firmes e agora, de pausas dolorosas. O tic-tac, antes o coração da casa, tornara-se um eco fantasma.

Sua neta, Clara, vinha às tardes. Uma estudante de design, com seus fones de ouvido e um olhar que buscava o futuro em telas luminosas. Para Clara, os relógios de Dona Helena eram curiosidades de museu, objetos de uma era onde o tempo era medido de forma tangível, não em notificações efêmeras.

“Vó, pra que isso?”, Clara perguntou certa vez, a voz tingida de uma curiosidade infantil que se misturava à pressa moderna. “No celular a gente vê a hora. E é preciso.”

Dona Helena sorriu, um sorriso que enrugava os cantos dos olhos e falava de décadas de paciência. “Precisão, minha flor, não é só o número certo no visor. É a alma da máquina. É a teimosia de um mecanismo que quer continuar a bater, mesmo quando o mundo prefere o silêncio.”

Havia um dilema silencioso entre as duas. A obsolescência programada dos novos tempos, que tornava os objetos descartáveis, contrastava com a dedicação de Dona Helena em resgatar o que parecia condenado ao esquecimento. Para ela, cada relógio era um corpo a ser reanimado, um legado a ser honrado. As microfraturas em uma mola de ouro, o atrito sutil em um eixo de latão, a poeira que se instalava como um véu de saudade – tudo isso era um chamado.

Um dia, chegou à loja um relógio de bolso, de prata gasta e com um monograma desbotado. Pertencia a um senhor chamado Seu Afonso, um professor aposentado que o herdou do avô. A história contada por Seu Afonso era sobre o dia em que a peça parou, no exato momento em que ele recebeu a notícia da morte de seu pai. O relógio guardava um silêncio carregado de significado.

Dona Helena trabalhou nele por semanas. O cheiro de álcool isopropílico e a luz focada do microscópio eram seus companheiros. Sentiu a resistência das peças, a complexidade de um mecanismo que parecia ter parado por vontade própria. Não era apenas uma questão de lubrificação ou polimento. Era como se o tempo tivesse se dobrado sobre si mesmo, retendo a hora exata de um luto.

Finalmente, com um toque delicado de uma pinça de ponta fina, uma pequena peça se encaixou. Um suspiro escapou dos lábios de Dona Helena. Lentamente, com um movimento hesitante, o pêndulo começou a balançar. O tic-tac, rouco no início, ganhou força. Ganhou ritmo. Ganhou vida.

Quando Seu Afonso retornou, os olhos marejaram ao ouvir o som familiar, o som que ele achava que jamais voltaria a ouvir. Ele segurou o relógio perto do ouvido, fechou os olhos e um sorriso triste e esperançoso iluminou seu rosto.

“É como se ele tivesse voltado a respirar”, murmurou. “Obrigado, Dona Helena. O tempo não se recupera, mas a memória… a memória bate forte de novo.”

Naquela noite, Dona Helena sentou-se em sua poltrona de couro rachado, o relógio de pêndulo de sua casa finalmente em pleno funcionamento ao seu lado. O tic-tac preenchia o silêncio, um som constante e reconfortante. Clara estava em seu quarto, ouvindo música.

Dona Helena olhou para as próprias mãos. Não eram mais apenas as mãos de uma relojoeira. Eram as mãos que teciam fios invisíveis entre o passado e o presente, que restauravam não apenas a precisão mecânica, mas a própria batida de memórias esquecidas. Ela sabia que o mundo lá fora continuaria correndo, descartando, esquecendo. Mas aqui, naquele pequeno refúgio de luz amarelada, o tempo tinha outra história para contar. Uma história de resiliência, de cuidado, de um sussurro persistente contra o ruído da obsolescência. E o tic-tac, mesmo que em um canto discreto da cidade, continuaria a ser ouvido.


Por: Isabela Fernandes Couto

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