O Silêncio das Cordas
O violão de Mara, um velho companheiro de mogno rachado e cordas gastas, parecia um eco sussurrado na tarde abafada do centro. O sol, implacável, dourava o asfalto e o suor escorria em finos filetes pelas têmporas dela, misturando-se à poeira levantada pelos carros apressados. Mara não era como os outros músicos de rua, aqueles que disputavam o tráfego sonoro com sambas e MPB batidos. As melodias que saíam de suas mãos, ou melhor, do seu coração, eram outras. Eram suspiros de alívio, bálsamos para feridas invisíveis.
Havia a Dona Lurdes, que vendia jornais ali na esquina há trinta anos. Ontem, a melodia de Mara – uma sequência suave de notas em mi menor, que lembrava a chuva fina caindo em telhado de zinco – trouxe as lágrimas aos olhos da velha senhora. “Parece que alguém finalmente entendeu a saudade que mora em mim, moça”, ela dissera, a voz embargada. E havia o João, o jovem aprendiz de pedreiro, que costumava parar para ouvir, o rosto marcada pela fadiga e um brilho de esperança renovada ao som de um acorde em dó maior, tão límpido que parecia o canto de um pássaro que ele não ouvia desde a infância.
Mas o palco de Mara era a calçada em frente ao “Bar do Elias”. Um botequim barulhento, com a frente pintada em um azul desbotado e a promessa de cerveja gelada e conversa fiada. Elias, um homem corpulento com um bigode espesso e um olhar desconfiado, era o guardião daquela esquina. E, nas últimas semanas, um muro.
A porta do bar estava fechada. Um cartaz amarrotado, preso com fita adesiva, anunciava: “Fechado para reforma”. Mara sabia que era uma desculpa. Elias não gostava do som suave e melancólico que, segundo ele, “espantava os fregueses de verdade”. Mara já ouvira ele resmungar para um amigo: “Essa música faz a gente pensar demais. Cerveja é pra esquecer, não pra lembrar.”
O dilema de Mara era cruel. Sua música, seu dom, florescia para aqueles que mais precisavam. A rua, barulhenta e indiferente, era seu palco. Mas o bar fechado, antes um pano de fundo para suas harmonias curativas, agora era um obstáculo. Ela sentia a falta dos olhares de gratidão, dos sorrisos tímidos que floresciam como flores em concreto. O silêncio que emanava do bar era um abismo, um vazio que ela não conseguia preencher com os acordes em sua alma.
Um dia, sentou-se na mureta em frente ao bar, o violão no colo. As cordas frias sob seus dedos. O burburinho da cidade a envolvia, mas ali, naquele pedaço de calçada, pairava um silêncio opressor. Ela fechou os olhos, buscando a melodia que acalmaria a própria ansiedade. Uma nota grave, solitária, ecoou em sua mente. Depois outra, e outra, entrelaçando-se em uma teia de som que parecia desatar nós no peito.
Enquanto tocava, sentiu um toque leve em seu ombro. Era Dona Lurdes, com um copo plástico na mão, onde havia um pouco de água. “Toma, moça. Você anda tão abatida.” Mara sorriu fracamente, aceitando o presente. Ao seu lado, João apareceu, limpando as mãos sujas de cimento em um pano. “Não desiste não, moça”, disse ele, com a voz rouca. “Tem gente que precisa ouvir você. Mesmo que o Elias não queira.”
Mara olhou para eles, para o bar fechado, para o céu que começava a tingir-se de laranja. A melodia em suas mãos ainda não havia encontrado seu destino. Mas, de repente, uma nova nota, mais forte, mais resiliente, surgiu. Talvez o palco não fosse apenas a calçada. Talvez a cura pudesse encontrar outros caminhos. Talvez o silêncio do bar fosse apenas um convite para que a música de Mara ecoasse ainda mais longe. Ela ergueu o violão, os olhos fixos no horizonte. O som ainda não era o de antes, mas era o som de um recomeço, sutil e persistente. E o bar continuava fechado.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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