O corpo de um adolescente com marcas de tortura, a comunidade entra em pânico e acusa um morador excêntrico.

O corpo de um adolescente com marcas de tortura, a comunidade entra em pânico e acusa um morador excêntrico.

O Corpo na Travessa do Sol

O sol da manhã de terça-feira, cruelmente brilhante, lavou o beco estreito atrás da Rua das Mangueiras, revelando o impensável. Não era a montanha de lixo habitual, nem os cachorros vira-latas revolvendo restos. Era um corpo. Um corpo jovem demais, esguio, mas retorcido em uma pose final de dor. As roupas, um jeans surrado e uma camiseta desbotada do time local, eram o suficiente para o reconhecimento imediato. Era o Pedrinho.

O alvoroço começou discreto, um murmúrio correndo de porta em porta. Dona Lurdes, com a bacia de lavar roupa em mãos, parou o que estava fazendo, o olhar fixo na aglomeração que crescia. Seu coração, um tambor descompassado no peito, martelava uma pergunta que não ousava formular em voz alta. A notícia chegou até ela como uma onda fria: Pedrinho. O Pedrinho, que vendia balinhas no semáforo da avenida, que jogava futebol na pracinha com os amigos, que tinha um sorriso capaz de desarmar a fúria do dia.

Logo, a pracinha, antes palco de alegrias infantis, tornou-se o centro da histeria coletiva. Gritos de revolta, choro inconsolável, a sensação palpável de que a inocência daquele bairro humilde, de casas coloridas e muros pichados, havia sido brutalmente estuprada. A Polícia Militar chegou, sirenes rasgando o silêncio, e o beco foi isolado com fita amarela, uma barreira sinistra entre o mundo dos vivos e o silêncio sepulcral do crime.

E então, o dedo acusador começou a apontar. Não para os criminosos anônimos que assombram as cidades, mas para aquele que, por opção ou por destino, vivia à margem. O Seu Raimundo. Morava numa casinha no final da rua, aquela com as janelas sempre fechadas e um jardim selvagem de mato e flores exóticas que só ele parecia entender. Um homem calado, de olhar profundo e muitas vezes perdido, que por vezes falava sozinho, recitando versos que ninguém entendia ou sussurrando nomes esquecidos. Era o “maluco”, o “estranho”. O bode expiatório perfeito.

“Eu sempre disse!”, gritou a Dona Gilda, a líder informal das fofocas de corredor, com o rosto vermelho de indignação. “Esse Raimundo! Vive sozinho, nunca trabalha, fala com as plantas! Coisa de gente ruim, é!”

O coro de vozes se alinhou rapidamente, um linchamento verbal que precedia o físico. A porta da casinha do Seu Raimundo, antes insignificante, agora atraía olhares carregados de ódio e medo. Um grupo de jovens, impulsionados pela adrenalina da vingança e pela dor da perda, começou a avançar.

O pai de Pedrinho, o Seu João, um homem de poucas palavras e ombros curvados pelo trabalho diário em uma fábrica, estava ali no meio, o rosto devastado. Mas algo em seu olhar, por baixo do desespero, era diferente. Uma vacilação, uma dúvida incômoda que o impedia de juntar-se à turba. Ele conhecia o Seu Raimundo, não como um monstro, mas como um homem solitário. Tinha visto Raimundo, semanas antes, tentando ajudar Pedrinho a consertar a corrente da bicicleta, com uma delicadeza inesperada.

O cheiro de suor e medo pairava no ar, misturado ao aroma adocicado e enjoativo das mangueiras em flor. O sol escaldante parecia intensificar a fúria reprimida. O grupo estava prestes a invadir a casa do Seu Raimundo quando um carro discreto, sem placa visível, parou no meio da rua. Dois homens em ternos cinzas, com rostos impassíveis, desceram. Um deles portava uma pequena pasta.

“Senhores, um momento”, disse o homem de terno, a voz calma, mas com uma autoridade que calou a multidão. Ele se dirigiu a um dos policiais, trocando algumas palavras em voz baixa. O policial assentiu, um franzir de testa em seu rosto marcado pelo sol.

O homem de terno, então, olhou para o Seu João. “Senhor, o nosso trabalho aqui ainda não acabou. Talvez haja algo que seu filho quisesse lhe contar.”

Seu João, atônito, apenas o encarou. Os dois homens voltaram para o carro e partiram tão rápido quanto chegaram, deixando um rastro de perguntas sem resposta no ar pesado da tarde. A multidão, desorientada pela intervenção inesperada, começou a se dispersar lentamente, os murmúrios voltando, mas agora carregados de novas incertezas. O Seu Raimundo, ainda trancado em sua casa, parecia uma sombra anônima em meio à confusão. E o corpo do Pedrinho, ainda no beco, era um lembrete gritante de que, em cada bairro, em cada rua, a verdade pode estar escondida em lugares mais profundos e sombrios do que a capacidade de um homem apontar um dedo.


Por: Ricardo Soares Guedes

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