Uma testemunha que se esconde, com medo de revelar a verdade.

Uma testemunha que se esconde, com medo de revelar a verdade.

O Lamento do Beija-Flor

O cheiro de café velho pairava no ar abafado do boteco, misturando-se ao da fritura de pastéis que se espalhava pela rua escura. Luzes fluorescentes estalam com um zumbido irritante, projetando sombras trêmulas sobre as mesas de fórmica descascada. Elias, encostado na parede fria, sentia o suor escorrer pelas têmporas, a garganta seca como o asfalto rachado lá fora. Cada ruído, um estrondo; cada movimento, uma ameaça.

Ele vira. Vira a placa de metal batendo forte, o grito abafado, o vulto correndo pela viela estreita que levava ao mangue. Vira a silhueta esguia, os cabelos longos presos num rabo de cavalo desajeitado, correndo como se o próprio diabo a perseguisse. Era a Maria. Maria, que vendia açaí na praça com um sorriso que iluminava até os dias nublados, Maria, que sempre lhe dava um picolé de graviola quando o calor apertava. Maria, que Elias jurava proteger, mesmo que em pensamento.

Agora, o pensamento o corroía. A polícia já estivera ali, com seus olhares duros e perguntas invasivas. Tinham anotado, tirado fotos, deixado um cartão que Elias mantinha no bolso do colete empoeirado, como um amuleto profano. Falara pouco, mentiras ensaiadas, desculpas esfarrapadas. A verdade, essa, sufocava-o como o mormaço de fevereiro.

O medo. Um bicho escamoso que se aninhara em sua espinha e ali se multiplicava, mandando ordens. Medo de quem fez, de quem mandou. Medo de que descobrissem que ele sabia. Medo de que o levassem para aquele lugar, aquele silêncio frio que se sentia nos olhos dos homens que o interrogavam.

Do outro lado da rua, as janelas de um prédio antigo exibiam breves lampejos de vida: uma televisão ligada, a silhueta de alguém passando. Para eles, Elias era apenas mais um vulto na paisagem urbana, um excluído do seu próprio drama.

Ele lembrava do beija-flor que certa vez se chocara contra o vidro da janela da sua barraca de feira. Ele estava morto, as asas iridescentes com um brilho opaco. Elias o enterrou sob uma mangueira, sentindo uma tristeza profunda pela fragilidade da vida, pela beleza que se apaga sem aviso. Maria era assim, um beija-flor vibrante, e agora… agora ele não sabia.

Se falasse, talvez Maria voltasse a sorrir. Talvez a justiça, lenta e cega como era, fizesse seu trabalho. Mas e se a vingança viesse mais rápido? E se o peso de uma confissão fosse mais leve que o de ser encontrado sabendo, e nada dizendo?

O som de um carro se aproximando fez Elias encolher-se ainda mais, o coração martelando contra as costelas. As luzes varreram a rua, uma varredura fria e impessoal. Pararam ali perto. Elias prendeu a respiração, as mãos enfiadas nos bolsos, os nós dos dedos brancos. Uma porta bateu. Passos. Vozes. Ele não se moveu. Não conseguia. Era um pássaro ferido, escondido entre os escombros da sua própria covardia. Esperando.

Uma brisa leve ergueu uma garrafa plástica da sarjeta, fazendo-a rolar em sua direção. Elias a observou, quase como se fosse um presságio. Ele sabia. Sabia o que tinha visto. O peso disso, porém, era um fardo que ele carregava sozinho, um segredo que o tornava um prisioneiro em sua própria existência. E o silêncio, o silêncio guardava mais perigos do que a verdade jamais poderia conjurar.


Por: Ricardo Soares Guedes

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