Uma luz fraca que pulsa em um lugar escuro.

Uma luz fraca que pulsa em um lugar escuro.

O Canto da Fagulha

A única luz que alcançava o beco, um fiapo amarelado e trêmulo, parecia a última inspiração de uma lâmpada prestes a ceder. Era um pontinho solitário na escuridão espessa que envolvia os fundos do Mercado Municipal, um lugar onde o cheiro de peixe velho se misturava ao suor dos catadores e à urina dos notívagos. Ali, entre sacos de lixo revirados e sombras que ganhavam formas assustadoras, Maria da Paz sentava-se.

O frio úmido da noite grudava em sua pele, um arrepio constante que não vinha só da temperatura, mas da solidão que a consumia há meses. A luz fraca era seu relógio, seu farol particular. Contava os pulsos dela para marcar o tempo até o sol nascer, até a agitação dos vendedores acordarem e a vida, por mais dura que fosse, voltar a ter um ritmo. Tinha se apegado àquela luz como a um afogada se apega a um pedaço de madeira. Era tudo o que restava de familiar, de previsível.

Maria da Paz, com seus cabelos finos e grisalhos presos em um coque desajeitado, tinha sido vendida. Não, não no sentido que se vende uma mercadoria barata. Era pior. Fora vendida para si mesma, para as dívidas do falecido marido, para um futuro que nunca chegou a vislumbrar. O barzinho que um dia regentou, cheio de risadas e o som rouco de um violão, era agora uma lembrança distante, quase um sonho esquecido.

Hoje, sua vida se resumia a esperar. Esperar o lixo, esperar a caridade, esperar o fim. Seus dedos grossos e enrugados remexiam em um saco, buscando algo que pudesse vender, um pedaço de plástico, um metal retorcido. O barulho metálico era abafado pelo silêncio sepulcral do beco.

De repente, um movimento. Uma sombra mais escura, mas não totalmente imóvel, se moveu perto da entrada do beco. Maria da Paz apertou o passo, o coração disparado. Não era o seu momento de receber companhia indesejada. Mas a sombra não se aproximou de forma ameaçadora. Era mais… hesitante.

A luz fraca captou um vulto pequeno, encolhido perto de um monte de caixas de papelão. Um garoto. Talvez uns sete, oito anos. Tinha a pele suja, as roupas rasgadas e um olhar de quem viu mais do que qualquer criança deveria. Ele estava segurando algo. Algo que brilhava intermitentemente com a mesma luz fraca que Maria da Paz tanto observava.

Era um pequeno brinquedo, um robô quebrado, com um LED defeituoso que piscava em um ritmo irregular. O garoto apertava o botão, e o robô respondia com sua luz moribunda. Ele parecia fascinado, hipnotizado.

Maria da Paz hesitou. Sua primeira reação foi de autopreservação, de desconfiança. No beco, qualquer novidade era perigo. Mas algo nos olhos do garoto, aquela busca por um brilho no meio da escuridão, a tocou. Era a mesma busca que ela travava.

Ela se aproximou devagar. O garoto não levantou os olhos. Maria da Paz sentou-se a uma distância respeitosa, observando-o. A luz do robô lançava reflexos dançantes em seus rostos sujos.

“Tá vendo a luz, menino?”, ela perguntou, a voz rouca pela falta de uso.

O garoto apenas murmurou algo inaudível.

“Eu também gosto dessa luz”, continuou Maria da Paz, sem esperar resposta. “Ela me diz que o dia vai chegar.”

Um silêncio se estendeu, pontuado apenas pelos pulsos da luz do robô e pelo distante zumbido da cidade. A solidão do beco parecia um pouco menos opressora.

O garoto, de repente, estendeu o robô na direção dela. A luz fraca, agora um pouco mais forte, iluminou o pequeno rosto dele. Havia uma pergunta em seus olhos, uma oferta silenciosa.

Maria da Paz olhou para o brinquedo quebrado e para a luz que ele emitia. E então olhou para o garoto, um reflexo tão frágil e resiliente quanto a própria lâmpada pendurada acima deles. Ela estendeu a mão, não para pegar o robô, mas para tocar levemente o ombro do menino. O tecido áspero de sua blusa roçou na pele fria dele.

“Vamos ficar um pouco aqui”, ela disse. “Esperando a luz ficar mais forte.”

O garoto não respondeu, mas não se afastou. E, ali, no canto mais escuro do beco, uma nova luz, mais tímida ainda, mas inegavelmente presente, começou a pulsar. Uma fagulha. Talvez apenas um lampejo, talvez o prenúncio de um nascer.


Por: Ricardo Soares Guedes

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