Uma lavadeira que testemunha um crime e, apesar das ameaças, busca a verdade.
CORRENTES DE SABÃO
O cheiro forte de sabão de coco e a umidade persistente eram a fragrância de dona Carmela. Seus braços, finos e fortes, moviam-se com a precisão de quem decora cada dobra de lençol, cada nó de avental. A lavanderia comunitária do bairro do Bixiga, em São Paulo, era seu reino de vapor e conversas sussurradas. O chão de cimento batido, sempre úmido, refletia a luz fraca que entrava pelas janelas altas, adornadas por grades enferrujadas que pareciam abraçar o céu cinzento da cidade.
Naquela terça-feira, o murmúrio costumeiro foi quebrado por um estrondo metálico vindo do beco adjacente. Dona Carmela, de luvas de borracha enrugadas, esticou o pescoço. A princípio, pensou ser mais uma briga de bêbados ou o barulho de um caminhão descarregando latas de lixo. Mas o grito, agudo e desesperado, gelou o sangue que corria por suas veias cansadas.
Largou a peça de roupa encharcada, o tecido pesado grudando em sua mão. Hesitou. O medo, um pássaro velho e acostumado a pousar em seu peito, bateu as asas. Mas a imagem do grito, dos olhos arregalados que por um instante cruzarou com os seus, a empurrou para a porta do beco.
Um homem, as costas largas e a camisa escura molhada, cambaleava para longe, um vulto sombrio engolido pela penumbra. No chão, sob a luz fantasmagórica de um poste solitário, um corpo jazia imóvel. Era o Seu Jonas, o dono da pequena banca de frutas na esquina, um homem quieto, de sorriso fácil e mãos calejadas.
Dona Carmela sentiu o estômago revirar. A surealidade do momento era sufocante, como o vapor denso que pairava na lavanderia. Aproximou-se cautelosamente, o cheiro de metal no ar, misturado ao adocicado de frutas esmagadas, era nauseante. Viu a faca cair das mãos do homem que fugia, o cabo escuro brilhando de um líquido que ela não queria reconhecer.
Os dias que se seguiram foram um borrão de apreensão. A polícia veio, fez perguntas, anotou. Dona Carmela, com a voz trêmula, contou o que viu. A fuga, o homem, a faca. Mas sua descrição era vaga, fragmentada pela adrenalina e pelo choque. E o homem que fugiu… ela jurou ter visto algo em seus olhos. Uma espécie de desespero, ou talvez… um medo ainda maior que o dela.
Os dias viraram semanas. A vida na lavanderia seguia seu curso, mas para dona Carmela, cada dobradura de tecido, cada torção de roupa, trazia de volta a imagem do beco. O medo se misturava a uma inquietação crescente. O homem que fugiu, o culpado, não estava preso. E ela sabia, sentia em seus ossos rachados, que ele voltaria. Ou pior, que ela seria a próxima.
Uma noite, enquanto dobrava lençóis brancos que cheiravam a lavanda, uma sombra pairou na porta da lavanderia. Era o homem. De perto, o rosto era jovem, marcado pela exaustão e por um olhar que implorava por algo que ela não sabia decifrar.
“A senhora… a senhora não disse tudo para a polícia”, ele sussurrou, a voz rouca.
Dona Carmela sentiu o coração disparar. As ameaças, as indiretas sussurradas pelas vizinhas que pareciam ver sua presença como um fardo, tudo ecoava agora. Mas o homem à sua frente não parecia um matador sanguinário. Parecia perdido.
“Eu disse o que vi”, ela respondeu, a voz mais firme do que esperava.
Ele deu um passo à frente. “Eles estão me caçando. Mas não fui eu… não daquele jeito. Ele… ele me empurrou.”
Dona Carmela o encarou. O dilema era cruel. Denunciar e arriscar a própria pele, ou silenciar e conviver com a dúvida, com a injustiça. Mas algo na vulnerabilidade daquele homem, na forma como seus ombros caíam, a fez ver além do crime.
“Quem?”, ela perguntou, o sabão de coco parecendo amargo em sua boca.
O homem hesitou, olhou para os lados como se temesse ser ouvido pelas paredes de concreto.
“O dono da boate. O português. Ele devia dinheiro pro Seu Jonas. E eu… eu só fui lá cobrar.”
O silêncio pairou na lavanderia, preenchido apenas pelo gotejar lento de uma torneira defeituosa. Dona Carmela sentiu um nó na garganta. A verdade era mais complexa, mais suja, do que imaginava. E ela, uma lavadeira simples, se via no centro de uma teia perigosa. O homem à sua frente era talvez uma vítima, talvez um cúmplice. E a boate, o português… pistas.
Ela não sabia se deveria acreditar. Mas o olhar dele, um misto de súplica e resignação, a fez pensar nas correntes que prendiam a todos naquela cidade. As correntes do medo, da dívida, da injustiça. E ela, com suas mãos calejadas pelo trabalho, sentiu uma força nova brotar. Não era apenas sobre o que ela viu, mas sobre o que ela sentia ser certo.
“Diga-me mais”, ela disse, o vapor da lavanderia subindo como um véu, envolvendo os dois em um segredo que prometia se desdobrar em caminhos incertos. E em algum lugar, longe dali, o rio Tietê continuava seu curso, levando consigo as histórias não contadas de São Paulo.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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