Uma história contada em um livro que se torna a própria realidade.

Uma história contada em um livro que se torna a própria realidade.

O Voo de Ícaro

A poeira fina e avermelhada da seca subia em redemoinhos preguiçosos, anunciando o fim de tarde escaldante no interior de Minas. Dona Elza, com as mãos calejadas de lavar e passar a vida inteira, desamarrou o nó do avental e o pendurou no gancho desgastado da cozinha. O cheiro de café coado fresco pairava no ar, misturando-se ao aroma adocicado de goiabada cascão que esfriava na bancada.

Na sala, sob a luz amarelada do abajur com estampa floral, seu neto, Pedro, lia em silêncio. Aos dezesseis anos, ele trazia nos olhos a melancolia dos poetas e a inquietude de quem busca um sentido para além do horizonte visível. O livro em suas mãos era um exemplar surrado de “O Voo de Ícaro”, de um autor desconhecido que Pedro descobrira numa feira de livros usados.

A história falava de um garoto, Ícaro, que vivia numa cidadezinha esquecida pelo progresso, assombrada por um rio que secava e um sonho impossível de voar. Ícaro, movido por uma força inexplicável, passava horas observando os urubus planar, desenhando asas em cadernos velhos e experimentando com materiais rudimentares encontrados na beira do rio. Seus desenhos, descritos com uma precisão quase tátil no livro, ganhavam vida nas páginas: a leveza das penas, o vento a roçar na pele, a vertigem da altura.

Pedro se via em Ícaro. A monotonia dos dias, a sensação de estar preso a um destino que não escolheu, o anseio por algo mais, algo grandioso. A diferença era que Ícaro, nas palavras do autor, parecia ter a capacidade de materializar seus desejos. A cada virar de página, Pedro sentia um arrepio. Parecia que o livro não apenas narrava, mas também *criava*. Quando Ícaro, frustrado, tentou construir uma asa com galhos secos e folhas de bananeira, a descrição no livro era tão vívida que Pedro sentiu o cheiro acre da seiva escorrendo e a aspereza da casca sob os dedos imaginários.

Certa noite, enquanto a lua cheia pintava de prata o quintal poeirento, Pedro relia o capítulo em que Ícaro, após meses de tentativas fracassadas, finalmente sentia a sustentação de sua asa improvisada. As palavras eram uma melodia de esperança e desespero: “E então, sentiu-o. Um leve tremor que percorreu a estrutura de bambu, um sussurro do vento que se agarrou às penas rudimentares. Um momento de suspensão, antes que a gravidade o puxasse para baixo, mas não com a força de antes. Era um convite.”

Ao fechar o livro naquela noite, Pedro sentiu um vento súbito e frio percorrer o quarto. O lençol da cama balançou como se uma brisa forte tivesse entrado pela janela fechada. Ele sorriu, um sorriso hesitante, mas cheio de uma nova luz. Nos dias que se seguiram, algo mudou. Os urubus no céu pareciam voar de forma mais ousada, quase desafiadora. As folhas das árvores, antes caídas e secas, ganhavam um verde vibrante e pareciam tremer com um ritmo próprio.

Um dia, enquanto ajudava Dona Elza a recolher as roupas do varal, Pedro notou um fio de linha de pipa, cor de céu, que se enroscara em uma das folhas de mamona. Era fino, mas incrivelmente resistente. Ele o pegou, sentindo uma estranha familiaridade, como se o tivesse visto em alguma das ilustrações do livro. Naquela noite, com o coração disparado, ele desceu até a margem do rio seco. A lua iluminava o leito rachado, e o silêncio era quase palpável. Ele desenhou no ar, como Ícaro fizera. Fechou os olhos e sentiu o vento, não mais como uma brisa, mas como um convite. E quando abriu os olhos, a linha de pipa, que ele segurava com força, estava esticada, flutuando a poucos centímetros do chão, como um fio invisível que o prendia ao nada. O livro “O Voo de Ícaro” jazia aberto a seus pés, as páginas parecendo brilhar sob a luz lunar, e a frase que ele acabara de ler parecia gravada em sua alma: “Onde a vontade encontra a substância, o impossível se curva.”


Por: Ricardo Soares Guedes

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