Uma guarda florestal que luta contra caçadores ilegais, protegendo uma espécie ameaçada.

Uma guarda florestal que luta contra caçadores ilegais, protegendo uma espécie ameaçada.

O Sol de Março Queimava a Terra Seca

O cheiro de terra batida e pinho torrado era a casa de Clara. Todos os dias, o ar da Serra da Capivara a envolvia, um abraço familiar e, por vezes, opressor. Aos 32 anos, os músculos de seus braços eram cordas tensas de quem carrega o peso da responsabilidade. O chapéu de couro puído escondia fios de cabelo que teimavam em escapar, um reflexo da sua própria rebeldia.

Ela era guardiã. Não de um castelo, mas de um pedaço sagrado do Brasil, onde a vida lutava para resistir. E a maior luta era contra o silêncio roubado. O murmúrio das patas do tatu-bola em fuga, o farfalhar das asas da ararinha-azul em seu último reduto. Fragmentos de vida que os caçadores ilegais queriam transformar em troféus mudos.

O rádio chiou, a voz rouca de Jairo, o outro guarda, um homem mais velho com rugas que contavam histórias de muitas secas e mais ainda de perigos: “Clara, o Curió apitou. No lugar de sempre. Parece que o Marco apareceu de novo.”

Marco. O nome soava como um espinho na garganta de Clara. Um homem pequeno, esquivo, com olhos de raposa que pareciam ver através das folhas. Caçador de renome, tanto pelo que sabia fazer, quanto pelo mal que causava. Diziam que ele vendia a carne para restaurantes sofisticados da capital, o osso para supostas curas milagrosas. Clara sentia nojo e uma raiva que a consumia por dentro.

Ela pegou a espingarda de calibre 12, um peso reconfortante em suas mãos. Não era para matar, era para intimidar. A munição era de borracha, para assustar, desorientar. A prioridade era capturar, não confrontar fisicamente. O matagal era seu santuário, mas também seu campo de batalha. O sol escaldante batia em seu rosto, pintando o suor em suas têmporas. O barulho dos insetos era uma sinfonia constante, um lembrete da vida que ela jurou proteger.

No local indicado por Jairo, a terra estava revolvida. Pegadas recentes, finas, afundadas na areia seca. Cheiro de suor humano e algo mais… um odor metálico fraco, de arma. Ela se moveu com a cautela de uma onça, os sentidos aguçados. O vento trazia o murmúrio distante de uma cachoeira, o canto de um pássaro que ela não conseguia identificar.

Então, ela viu. Ao longe, uma figura ágil, um saco nas costas, a silhueta inconfundível de Marco. Ele se movia rápido, quase se fundindo com a vegetação. Clara apertou o passo, o coração batendo como um tambor na caixa torácica. Ela gritou, a voz ecoando pelo silêncio da caatinga: “Marco! Pare aí mesmo!”

Ele congelou por um instante, a cabeça virando-se lentamente. Seus olhos encontraram os de Clara, um duelo silencioso de olhares carregados de anos de perseguição. Um leve sorriso de escárnio se formou em seus lábios finos. Ele deu um passo para trás, em direção a um emaranhado de mandacarus.

Clara levantou a espingarda, mas antes que pudesse apertar o gatilho, um grito agudo e desesperado rasgou o ar. Não era humano. Era o grito de um animal em pânico.

Marco desapareceu na vegetação. Clara hesitou por um segundo, o dever dividido. O caçador, a espécie ameaçada. Ela escolheu o grito. Correu na direção do som, a vegetação arranhando sua pele.

Chegou a uma pequena clareira. No chão, um filhote de tatu-bola, as patinhas se debatendo freneticamente. Um laço de arame apertado em torno de sua pequena barriga, cortando a pele fina. Perto dali, pendurado em um galho baixo, um saco de pano, com o cheiro inconfundível de carne fresca. A caça de Marco.

O filhote choramingou, os olhinhos escuros buscando um alívio que não vinha. Clara ajoelhou-se, a raiva substituída por uma dor lancinante. Com mãos trêmulas, ela desfez o laço, o arame gelado. O filhote se encolheu, mas não fugiu. Clara o pegou com cuidado, sentindo o tremor em seu pequeno corpo. O corte era profundo, mas não mortal.

Olhou ao redor. Marco tinha ido embora. Ele sempre ia. Deixava para trás a destruição, o silêncio. Clara sabia que Marco não era o único. Havia outros, movidos pela ganância, pela ignorância. E ela era apenas uma. Uma guardiã contra um mar de escuridão.

Ela acariciou o focinho do filhote, o cheiro de terra e medo impregnado em seus dedos. Não era suficiente capturá-los. Era preciso mudar mentes, corações. Mas como? Onde começar? O peso do mundo parecia recair sobre seus ombros magros.

O filhote começou a se acalmar em seus braços, um leve ronronar de conforto. Clara o aconchegou contra o peito, sentindo o calor frágil. O sol continuava a queimar, implacável. A luta continuava. E amanhã, ela estaria ali de novo, observando, esperando, protegendo. Mas a questão persistia, uma sombra fria em seu coração quente: quanto tempo mais a terra e suas criaturas aguentariam? E quando o silêncio final chegasse, quem ainda se lembraria de seus murmúrios de vida?


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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