Uma fazenda antiga com o fantasma de um animal que protege o rebanho.
**O Guardião Espectral de Boitatá: A Lenda Viva que Zela Pelo Rebanho de Dona Benedita**
No coração do Cerrado goiano, onde o sol inclemente beija a terra vermelha e as árvores retorcidas contam histórias milenares, aninha-se a Fazenda Boitatá. Não é apenas mais uma propriedade rural; é um refúgio, um altar de fé e, segundo os que ali vivem, o lar de um protetor que transcende a carne e o osso: o fantasma de um boi.
“Dona Benedita”, como é carinhosamente chamada pela comunidade, tem 82 anos e cabelos brancos como a névoa da manhã no pasto. Seus olhos, profundos e marejados de sabedoria, carregam a mesma resiliência do Cerrado. Ela senta-se na varanda de sua casa simples, de adobe e telhas quebradas pelo tempo, e conta a saga que se repete há gerações em sua família.
“Era no tempo do meu avô, o Seu Zé Benedito. Ele tinha um boi de uma força e coragem que ninguém via. Era o Juba, o mais esperto de todos. Um dia, uma onça pintada, faminta, apareceu querendo levar uma bezerra novinha. O Juba, sem medo, partiu pra cima dela. Dizem que a luta foi feroz, no meio da noite, com o luar pintando as sombras. O Seu Zé tentou intervir, mas a onça era arisca demais. No final, encontraram a onça morta, a quilômetros daqui, e o Juba… bem, o Juba sumiu. Nunca acharam o corpo dele. Foi como se ele tivesse virado pó.”
Mas o desaparecimento de Juba não foi o fim de sua proteção. Ao contrário, foi o começo. “Logo depois, as noites começaram a ficar estranhas”, prossegue Dona Benedita, sua voz embargada por uma emoção que desafia a lógica. “A gente ouvia um mugido diferente, grave, que parecia ecoar de lugar nenhum. E o rebanho, que antes sofria com roubos e ataques de predadores, começou a ficar mais calmo. Nenhum bicho selvagem mais se atrevia a chegar perto. Era como se algo invisível estivesse ali, rondando.”
Os mais velhos da região corroboram a história. Seu Osvaldo, neto de um antigo vaqueiro da fazenda, hoje com seus 70 anos, se lembra das conversas à roda de fogueira. “Meu pai contava que, em noites de lua cheia, via uma sombra enorme, com o contorno de um boi, patrulhando os campos. Não era um boi vivo, a gente sentia. Era um vulto, que parecia feito de luz e poeira.”
O cotidiano na Fazenda Boitatá segue um ritmo ditado pela natureza e, talvez, por essa presença espectral. O pasto, vasto e verdejante, é o palco principal. As vacas e bezerros pastam despreocupados, como se o perigo fosse uma lenda distante. Os vaqueiros, hoje em dia com seus chapéus de couro e botas gastas, admitem um certo temor reverencial.
“A gente chega de manhã, tudo tranquilo. A gente escuta os mugidos normais, mas às vezes, quando a noite cai, no silêncio, parece que tem um outro som, mais profundo, que faz a gente arrepiar. Não é medo, é respeito. É saber que tem alguma coisa olhando por nós e pelos bichos”, confessa João, um dos peões mais jovens, com um sorriso enigmático.
Para a ciência, a explicação é simples: a combinação de sorte, a vastidão da área que dificulta a ação de predadores e a vigilância humana. Mas para Dona Benedita e para a comunidade que cresceu ouvindo a lenda, a fé na força de Juba é inabalável. “É a fé, meu filho. É a fé em algo maior que a gente, que nos protege. O Juba era um boi que amava o seu rebanho, que deu a vida por ele. Acho que o amor não morre, ele só muda de forma.”
Os contos sobre o boi fantasma não são apenas um folclore local. Eles moldam a identidade da fazenda, fortalecem os laços comunitários e oferecem um consolo ancestral em tempos de incertezas. É a crença de que, mesmo na solidão do campo, mesmo diante do desconhecido, algo de bom e protetor pode estar zelando.
Mas a verdade, como o próprio Juba, parece se esconder nas brumas da crença e da razão. Dona Benedita olha para o horizonte, onde o sol começa a se despedir, tingindo o céu de tons alaranjados e roxos. Um leve brilho parece dançar no ar, quase imperceptível, entre as árvores centenárias.
Será que em cada mugido estranho, em cada sombra fugaz que cruza o pasto, reside a prova de um amor que transcende a vida? E se o fantasma de Juba é real, quais outros mistérios o Cerrado guarda em seu âmago, protegidos por forças que a mente humana ainda não consegue desvendar?
Por: Felipe Bastos Guimarães

Deixe um comentário