Uma expedição a uma caverna que revela um segredo ancestral e terrível.
O Buraco no Manto
A lama úmida grudava nas solas das botas gastas de Mateus, cada passo um esforço resignado contra a gravidade e a expectativa incerta. O cheiro acre da terra molhada, misturado com um pungente odor de mofo e algo indescritível, quase metálico, pairava no ar denso da boca da caverna. Era o “Buraco”, como os locais chamavam, um rasgo escuro na encosta de um morro coberto por uma mata densa, a alguns quilômetros da pequena cidade de Serrinha, onde o tempo parecia ter esquecido de avançar.
Ele olhou para trás, para a luz difusa que lutava para penetrar a vegetação. Ali estava o mundo dele: a poeira vermelha das estradas de terra, o canto dos sabiás ao amanhecer, o burburinho das conversas na feira de domingo. E ali, diante dele, o desconhecido. A expedição, mais por teimosia de Mateus do que por convicção de seus poucos companheiros, era um capricho alimentar pela história que sua avó contava, sussurros sobre algo guardado pelas entranhas da terra, algo que definia a própria essência de Serrinha.
Ao seu lado, Dona Elvira, a senhora de quase setenta anos cujos olhos azuis, ainda vivos, pareciam ter visto séculos. Seus dedos nodosos acariciavam a madeira envelhecida de uma bengala, enquanto sua respiração, um pouco ofegante, misturava-se ao ar pesado. Ela era o elo com o passado, a guardiã das lembranças fragmentadas. Ao lado dela, Léo, o sobrinho mais novo de Mateus, um rapaz de dezoito anos, cuja curiosidade juvenil misturava-se a um medo palpável. Ele carregava a lanterna mais potente, seu feixe tremendo em certos momentos, como se a própria escuridão o assustasse.
“Vovó, tem certeza disso?”, a voz de Léo soou rouca, ecoando de forma sinistra.
Dona Elvira sorriu, um sorriso que parecia guardar mais do que alegria. “O que está guardado, menino, está destinado a ser encontrado. A terra tem memória, e essa memória precisa ser revivida.”
Adentraram o Buraco. O som do mundo exterior se dissolveu, substituído pelo pingar incessante de água e o roçar das roupas contra as rochas úmidas. A luz das lanternas desenhava formas fantasmagóricas nas paredes irregulares, repletas de formações calcárias que lembravam dentes de gigantes. O calor era opressivo, uma umidade que se agarrava à pele e dificultava a respiração.
Após o que pareceram horas, chegaram a uma câmara maior. O chão era irregular, pontilhado por pequenas pedras soltas que tilintavam a cada movimento. No centro, um afloramento rochoso peculiar, quase polido, parecia vibrar com uma energia latente. Mas o que chamou a atenção de Mateus foi a escultura na parede oposta. Não era uma formação natural. Era um entalhe, tosco, mas inconfundível, representando figuras humanas em poses de reverência e sofrimento. E ao centro da escultura, um círculo oco, escuro como a noite sem estrelas.
Dona Elvira se aproximou, a bengala batendo suavemente no chão. Seus olhos fixaram-se no círculo. “Aqui”, sussurrou, a voz embargada. “Aqui eles guardavam. E aqui eles temiam.”
Mateus sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Havia algo naquele lugar que transcendia a geologia. O ar, antes apenas úmido e mofado, agora parecia carregar um peso, uma história não contada. Léo, em silêncio, iluminava a escultura com a lanterna. Seus raios revelaram detalhes antes ocultos: símbolos estranhos, entrelaçados em espirais, que pareciam dançar nas sombras.
Dona Elvira estendeu a mão, hesitando antes de tocar a rocha fria perto do círculo. “Minha mãe me contava. Eles chamavam isso de ‘a garganta do mundo’. Diziam que era o portal para onde os medos iam, e de onde eles, às vezes, voltavam.”
A avó de Mateus nunca se aprofundou nos detalhes, sempre com um véu de mistério e um tremor na voz. Mas agora, ali, com a presença palpável daquele lugar, o medo ancestral parecia sussurrar nos ouvidos deles.
Mateus se aproximou do círculo. Sentiu uma leve corrente de ar frio emanar de seu interior, um sopro gelado que contradizia o calor da caverna. Não era vento. Era algo diferente. Ele inclinou a cabeça, tentando enxergar na escuridão. Por um instante fugaz, achou que viu movimento, um brilho fugaz, algo que não pertencia àquele mundo.
“O que é, vovó?”, perguntou Léo, a voz tensa.
Dona Elvira fechou os olhos. “É a lição que nunca aprendemos. A lição sobre o que deixamos para trás, o que esquecemos e o que, por medo, enterramos. E a terra, meu neto, é uma tumba paciente.”
Um som inusitado ecoou da escuridão do círculo. Não era um rolar de pedras, nem um gotejar d’água. Era um murmúrio baixo, quase um lamento, que parecia vir de muito, muito longe, e ao mesmo tempo, de dentro deles. Um som que despertou uma angústia primordial, um eco de perdas e terrores que Mateus não sabia que carregava.
Ele deu um passo para trás, o coração disparado. Léo agarrou seu braço, os dedos apertando com força. A escultura na parede, sob a luz trêmula da lanterna, parecia ganhar vida, os rostos entalhados contorcendo-se em uma mudez eterna.
Dona Elvira abriu os olhos, a serenidade misturada a uma profunda tristeza. “Alguns segredos são mais pesados que as rochas que os guardam. E quando os desenterramos, não temos controle sobre o que eles revelam.”
O murmúrio continuou, subindo em intensidade, um coro fantasmagórico que não podiam ignorar. Mateus olhou para o círculo negro, depois para o rosto envelhecido de sua avó, e para o terror nos olhos de Léo. Serrinha, com seus dias ensolarados e suas noites estreladas, de repente parecia tão frágil. E aquele Buraco, um portal para algo que a cidade tentava esquecer, um lembrete sombrio de que o passado, por mais que se queira enterrá-lo, sempre encontra um jeito de respirar. A pergunta que pairava no ar úmido e pesado era simples: o que mais viria do Buraco? E o que eles fariam com o que acabavam de despertar?
Por: João Pedro Silveira

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