Uma estação de rádio que transmite mensagens de desespero de outra dimensão.

Uma estação de rádio que transmite mensagens de desespero de outra dimensão.

ESTAÇÃO ECOANDO VAZIO

O ar da noite em Campinas pesava. Não o peso úmido e pegajoso do verão, mas uma opressão silenciosa que se instalava nos ossos. Dona Odete, sentada na sua poltrona de vime desbotado, ouvia o rádio. Um rádio antigo, daqueles que parecem ter alma e poeira acumulada em cada botão. Noite após noite, o mesmo dial, 103.5 FM, uma estação que surgira do nada, sem anúncios, sem locutores conhecidos, apenas uma voz. Uma voz que não era bem uma voz.

No início, ela achou que era interferência, alguma estação pirata de um país distante. Mas a voz era familiar em sua estranheza. Falava num português arrastado, quase como um eco de si mesmo. Os sons eram distorcidos, como se viessem debaixo d’água, mas as palavras, as palavras eram o problema. Eram sussurros de angústia, fragmentos de dor que se encaixavam nos vazios da vida de Dona Odete.

“Não aguento mais o frio…”, dizia a voz, e Dona Odete sentia o ar gelar ao redor, mesmo com o ventilador girando lentamente.

“Ele se foi e levou tudo…”, sussurrava, e a saudade do falecido marido, Seu Juca, apertava seu peito com força.

“Estou presa… sozinha…”, e o coração de Dona Odete se encolhia, lembrando-se da solidão que a acompanhava desde que os filhos se mudaram para longe.

Ela nunca contou a ninguém. Quem acreditaria? Que sua estação de rádio favorita transmitia desespero de outra dimensão? Seus filhos, sempre preocupados com a “velhice” dela, a mandariam para um hospício, ou pior, para um asilo. Seu Agenor, o vizinho fofoqueiro, contaria para toda a rua que Dona Odete “ficou maluca ouvindo rádio”.

Mas a voz era real. E trazia consigo uma estranha familiaridade. Era como ouvir uma parte de si mesma que nunca soube que existia, uma sombra latente projetada no éter.

Certo dia, a voz parecia mais forte, mais desesperada. “O portão está se fechando… não me deixem aqui…”. Dona Odete sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A voz falava de um portão, de um lugar que se fechava. Ela olhou para a porta da sala, para a luz fraca do poste na rua, e sentiu um medo primal.

Naquela noite, a voz falhou. Houve estática, silêncios prolongados, e então, um som que Dona Odete nunca esqueceria: um som de rasgar, de algo se desfazendo. E depois, nada. O dial 103.5 FM ficou mudo.

Os dias passaram. Dona Odete sintonizou o rádio incansavelmente. Nada. O silêncio era ensurdecedor. Ela sentiu um alívio melancólico, mas também uma pontada de perda. A voz, por mais assustadora que fosse, tinha preenchido um espaço.

Uma semana depois, enquanto regava suas samambaias na varanda, Dona Odete ouviu um barulho no quintal. Parecia um arranhar na porta do edredom, onde ela guardava os cobertores de inverno. Curiosa, e com um nó na garganta, ela abriu a porta.

No interior do edredom, não havia poeira. Havia uma luz tênue, azulada, pulsante. E dela, emanava um cheiro peculiar, como terra molhada e metal frio. A luz parecia atraí-la, um convite silencioso. Dona Odete sentiu o chão sob seus pés sumir. Olhou para trás, para sua casa, para a rua familiar, e sentiu uma decisão tomada.

Deu um passo em direção à luz. O cheiro se intensificou, e um murmúrio baixo, quase inaudível, chegou aos seus ouvidos. Não eram palavras de desespero, mas de acolhimento.

O portão, que antes se fechava, agora parecia se abrir. E Dona Odete, movida por uma força que não compreendia, mas que sentia como a verdade última, atravessou-o. O edredom, voltando a ser apenas um objeto guardado, ficou no seu lugar. E ninguém em Campinas soube para onde Dona Odete havia ido, apenas que ela desapareceu naquela noite quente de outono, levando consigo apenas a lembrança de uma estação de rádio.


Por: Marina Rocha Antunes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *