Uma cidade esquecida sob o gelo com habitantes hostis.

Uma cidade esquecida sob o gelo com habitantes hostis.

O Gelo que Roubou o Sol

A neve caía, implacável. Não a neve fofa de postal, mas grãos de gelo cortantes que se agarravam à pele como pequenas lascas de dor. A velha D. Alzira, encolhida em seu xale de lã desbotada, observava pela janela embaçada. A paisagem lá fora, outrora vibrante com o azul profundo do céu e o verde esperança dos campos de trigo, agora era um mosaico de brancos e cinzas, um sudário que envolvia toda a Vila Esperança.

Esperança. A ironia do nome doía mais que o vento. Ninguém ali se lembrava quando foi a última vez que um raio de sol aquecera o chão de terra batida da praça. Gerações nasceram e morreram sob essa eterna penumbra, com os dias medidos pelo acender e apagar das lamparinas a querosene. A cidade, construída por imigrantes que buscavam um recomeço nas terras férteis do sul, fora gradualmente engolida pela brancura invasora. As casas, antes com suas varandas coloridas, agora ostentavam telhados encostados no céu, como ombros curvados pela fadiga do tempo e do frio.

O gelo não era apenas um elemento físico; era um estado de espírito. Tornara-se parte do caráter dos habitantes, um escudo forjado na luta diária pela sobrevivência. A hostilidade, aos olhos de quem vinha de fora – se é que alguém ainda ousava vir –, era uma defesa necessária. O medo do desconhecido se transformara em desconfiança enraizada. Qualquer estranho era visto como um potencial saqueador dos poucos recursos que ainda existiam. O peixe escasso do rio congelado, as raízes amargas coletadas na beira da floresta, o pouco milho guardado a sete chaves.

João, neto de D. Alzira, limpava a lente do rifle de caça enferrujado. Aos dezenove anos, ele carregava nos ombros o peso da proteção da família. Sua mãe, Maria, remendava a única manta grossa que os aquecia nas noites mais frias, os dedos ágeis, mas marcados pela dureza da vida. Um arrepio percorreu sua espinha, não só pelo frio, mas pela lembrança do estrondo distante que ouviram na noite anterior. Um som que não pertencia à Vila Esperança.

Naquela manhã, o silêncio foi quebrado por um grito agudo vindo da estrada principal. Era Pedro, o vigia. Tinha a pele arroxeada pelo frio e os olhos arregalados. “Um… um carro!”, ele balbuciou, a voz rouca pela névoa gelada.

O burburinho tomou conta da praça. Carro? Aquele objeto estranho, barulhento e vindo de fora, era algo de lendas, de contos sussurrados pelas crianças antes de adormecerem. Um grupo de homens, liderados por Manuel, o líder não oficial da vila, com a mandíbula cerrada e o olhar desconfiado, dirigiu-se para a estrada. João foi junto, o rifle firme nas mãos.

O veículo era um jeep velho, coberto de gelo, parado no meio da neve. Dentro, encolhido no banco do motorista, estava um homem. Tinha a barba longa e desgrenhada, os olhos fixos em um ponto qualquer da paisagem branca. Estava pálido, exausto, mas vivo.

Manuel se aproximou, a voz dura como o gelo. “Quem é você? O que faz aqui?”

O homem ergueu a cabeça lentamente. Seus olhos, de um azul claro quase transparente, varreram os rostos hostis à sua frente. Havia algo neles que ia além da simples desconfiança; era um cansaço profundo, uma resignação quase assustadora.

“Eu… eu me perdi”, respondeu o estranho, a voz fraca, um sopro de ar quente contra o frio cortante. “Estava procurando… um lugar.”

Um lugar. A palavra ecoou na mente de cada morador da Vila Esperança. Um lugar onde não houvesse gelo, onde o sol pudesse beijar a pele, onde a terra fosse capaz de dar flores e frutos. Um lugar que eles mesmos haviam esquecido que existia.

Manuel o encarou, a hesitação por um breve instante obscurecendo a dureza em seu olhar. D. Alzira, observando tudo da janela, sentiu um aperto no peito. Aquele homem, com sua vulnerabilidade exposta, trazia consigo a lembrança de um mundo que eles tentaram enterrar sob camadas de gelo e hostilidade. E o que fazer com essa lembrança? Apertar ainda mais o casulo, ou arriscar sentir o calor que ele parecia, de alguma forma, ainda carregar consigo? A neve continuava a cair, mas naquele instante, o frio pareceu um pouco menos absoluto.


Por: Isabela Fernandes Couto

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