Uma biblioteca com o espírito de um bibliotecário que não deixa ninguém desarrumar os livros.
O SILÊNCIO QUE GUARDA AS ESTANTES
A poeira dançava nos raios oblíquos de sol que cortavam a penumbra da Biblioteca Municipal Professor Aurélio Sampaio. Não era uma poeira qualquer; parecia suspensa, estagnada no ar como uma memória inerte. Era o tipo de lugar que cheirava a papel antigo, a cola ressecada, a um vago perfume de lavanda que ninguém sabia de onde vinha.
Mariana, com seus dezesseis anos e um turbilhão de inseguranças que pareciam morar dentro dela, gostava daquele cheiro. Era um antídoto para o ruído constante do mundo lá fora, para as expectativas que a sufocavam. Ela passava horas ali, não exatamente lendo, mas se perdendo entre as lombadas. Era como flutuar em um oceano de histórias, cada volume uma ilha aguardando para ser explorada.
A biblioteca, porém, tinha uma peculiaridade. Os livros estavam sempre no lugar. Sempre. Mesmo quando a sala parecia ter sido varrida por um furacão de jovens curiosos, ou a livraria estava cheia de idosos em busca de seus autores favoritos, as obras retornavam às suas posições com uma precisão assustadora. Nenhuma lombada pendia para fora, nenhuma página estava dobrada de forma desleixada. Era como se uma mão invisível, firme e paciente, estivesse sempre lá, corrigindo qualquer desvio.
Os funcionários da biblioteca, dona Fátima e o jovem Pedro, brincavam que era o espírito do Professor Aurélio Sampaio, o bibliotecário que a fundou décadas atrás e que era conhecido por seu rigor metódico e sua devoção absoluta à ordem. Um homem que, segundo as fofocas locais, preferia a companhia de seus livros à de qualquer ser humano.
Mariana sabia que era tolice. Aquele era um lugar público, o desleixo era inevitável. Mas ela também sentia algo. Uma espécie de presença vigilante, um sussurro silencioso que desincentivava a desordem. Certa vez, ela pegou um livro de poesia, desajeitadamente, e o deixou sobre uma mesa enquanto buscava outro. Quando voltou, o livro estava de volta à sua estante original. A luz incidia sobre ele de um jeito específico, como se a brisa que agitava as cortinas tivesse sido cuidadosamente orquestrada para realinhá-lo.
O dilema de Mariana era outro. Ela precisava escrever um trabalho sobre literatura brasileira para o colégio. As ideias pareciam escorrer por entre seus dedos como areia. E os livros… os livros a olhavam com reprovação silenciosa, como se soubessem de sua indecisão, de sua procrastinação.
Um dia, desesperada, ela se aventurou por uma seção que raramente frequentava, a de crônicas antigas. E lá, entre volumes surrados, encontrou um diário. Sem capa, com as páginas amareladas e a caligrafia miúda e elegante. Era de um homem chamado Joaquim. Ele escrevia sobre a biblioteca, sobre o Professor Aurélio Sampaio. Descrevia a obsessão do bibliotecário pela organização, o modo como ele parecia travar uma batalha silenciosa contra o caos que a vida impunha ao seu refúgio.
Mas havia algo mais nas palavras de Joaquim. Uma melancolia profunda, um anseio não correspondido. Ele escrevia sobre a beleza efêmera de um livro bem arrumado, sobre como a ordem ali era um espelho da ordem que ele buscava em sua própria vida, uma vida marcada pela perda, pela solidão. Ele parecia encontrar consolo na previsibilidade das estantes, na certeza de que, ali dentro, nada se perderia, nada seria alterado sem permissão.
Mariana leu avidamente, sentindo uma conexão estranha com aquele homem desconhecido. Ele não era o Professor Aurélio Sampaio, mas compartilhava, à sua maneira, a mesma devoção ao santuário do conhecimento. Ele não era um fantasma, mas um guardião de um sentimento.
Ela encontrou, em uma das últimas páginas do diário, um trecho que a fez suspirar: “Sei que meu tempo aqui é breve, e que a vida lá fora é bagunçada demais para ser domada. Mas aqui, no silêncio que guarda as estantes, eu deixo um pedaço de mim. Uma prece para que a ordem nunca seja completamente desfeita. Uma lembrança de que, mesmo na fragilidade do papel, pode haver uma força que resiste ao tempo.”
Mariana fechou o diário, sentindo um aperto no peito. O trabalho para o colégio ainda estava longe de ser feito, mas algo dentro dela havia mudado. Aquele sentimento que pairava no ar, aquela ordem inabalável, já não parecia tão assustadora. Parecia, em vez disso, um abraço. Um convite para encontrar a sua própria ordem, mesmo em meio ao caos da vida.
Ao se levantar, notou um livro levemente inclinado em uma prateleira alta. Ela esticou a mão para endireitá-lo, e no instante em que seus dedos tocaram a lombada, sentiu um leve formigamento. O livro se ajustou perfeitamente ao seu lugar, com um som quase imperceptível de satisfação. Mariana sorriu, um sorriso que não chegava aos olhos, mas que era sincero. Talvez o espírito do Professor Aurélio Sampaio estivesse ali, mas talvez também houvesse um lugar para um Joaquim, e quem sabe, para uma Mariana que aprendia a encontrar sua voz entre as páginas que a rodeavam. Ela pegou outro livro, desta vez com um propósito. E, ao devolvê-lo, fez questão de que ele se encaixasse perfeitamente, como se estivesse contribuindo para um legado silencioso. A porta da biblioteca se fechou atrás dela, mas o silêncio que guardava as estantes permaneceu, esperando o próximo suspiro, a próxima história, a próxima tentativa de ordem.
Por: Marina Rocha Antunes

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