Um testamento que aponta para o assassino entre os beneficiários.

Um testamento que aponta para o assassino entre os beneficiários.

O Lamento do Mandacaru

O cheiro de terra molhada e jasmim pairava no ar denso da tarde, um perfume agridoce que Dona Odete sempre associou à espera. E ela esperou. Esperou a vida inteira, nas varandas de sua casa de taipa no interior de Pernambuco, vendo o sol incendiar o horizonte e as chuvas lavarem a poeira das estradas de chão. Agora, esperava pelo fim, um fim que lhe parecia mais um recomeço, ou talvez apenas a confirmação de um ciclo.

A família se amontoava na sala principal, um mosaico de rostos marcados pela apreensão. Seu filho mais velho, o advogado Marcelo, austero em seu terno escuro, alisava as sobrancelhas franzidas como se pudesse achatar as preocupações. A caçula, Sofia, a mais sentimental, choramingava baixinho no canto, abraçada a um travesseiro desbotado. E havia Rogério, o sobrinho que ela sempre tratou como filho, com seu sorriso fácil e olhos que, ultimamente, pareciam carregar um peso estranho, como se escondessem segredos no fundo de um poço.

A advogada, Dra. Helena, com seus óculos de aro fino e voz melódica, desdobrou o papel com a solenidade de quem desenterra relíquias. Dona Odete, encolhida em sua poltrona de vime, observava cada movimento, cada respiração suspensa. As últimas semanas tinham sido um calvário. A doença a definhara, mas a lucidez, essa teimosa companheira, se manteve firme. E com ela, a certeza de que a paz de sua casa, agora ameaçada, precisava ser assegurada.

“Dona Odete, em pleno gozo de suas faculdades mentais, com data de hoje, deixa à sua posteridade o seguinte legaddo…” A voz da advogada ecoava na quietude, pontuada apenas pelo tique-taque insistente do relógio de parede. Marcelo assentia a cada cláusula, a cada termo técnico. Sofia fungava, e Rogério, com um lenço discreto, limpava o canto dos olhos, uma teatralidade que sempre a incomodava.

O testamento era direto: a casa, a modesta conta bancária, a pequena criação de galinhas. Tudo seria dividido em partes iguais entre Marcelo, Sofia e Rogério. Uma clareza esperada, um gesto de amor que ela pensava não ter deixado margem para dúvidas.

Mas a última parte era um soco no estômago, uma rajada de vento inesperada que arrepiou a espinha de todos.

“E, por fim, com a mais profunda tristeza e a firme convicção de que a justiça há de prevalecer, declaro que, se algo vier a me acontecer antes que este testamento seja lido, e tal acontecimento for de natureza violenta, desejo que o beneficiário que demonstrar, em sua conduta e declarações, o menor pesar pela minha partida, o maior desespero por minha ausência, seja considerado, e apenas ele, o principal suspeito de minha partida prematura. Que as palavras sejam o espelho da alma, e que a alma, quando manchada, não consiga disfarçar sua verdade.”

Um silêncio sepulcral se instalou. O cheiro de jasmim pareceu se transformar em algo pesado, sufocante. Marcelo engoliu em seco, seus olhos buscando os de Sofia, que agora o encarava com desconfiança. Sofia, por sua vez, parou de chorar e ergueu o rosto pálido, olhando para Rogério.

Rogério. Ele não chorava mais. O lenço jazia em seu colo, esquecido. Havia um brilho diferente em seus olhos, um misto de surpresa e algo que parecia… alívio? Ele se endireitou na cadeira, um movimento quase imperceptível, mas que Dona Odete, do alto de sua experiência de mãe e observadora atenta, notou.

“Isso é absurdo, mãe!”, a voz de Marcelo tremeu, o tom profissional se esvaindo em um lamento genuíno de indignação e… medo? “Como a senhora pode pensar uma coisa dessas?”

Sofia, com a voz embargada, mas firme, disse: “Mas, mãe… por quê? Quem faria isso?”

Rogério apenas sorriu, um sorriso pálido, sem a alegria de antes. “É uma declaração curiosa, Odete. Muito… dramática.” Ele evitou o olhar de todos, focando em um ponto indefinido na parede descascada.

Dona Odete fechou os olhos, sentindo a fraqueza tomar conta. Ela não diria mais nada. As palavras, como sementes lançadas ao vento, agora germinariam sozinhas no solo árido da desconfiança. Ela vira a verdade, ou pelo menos a sombra dela, nos olhos de Rogério. Vira a negação em Marcelo, o desespero em Sofia. O testamento não era apenas um documento, mas um espelho que refletia as faces ocultas de seus entes queridos. E no silêncio que se seguiu, apenas o lamento do mandacaru ao longe, quebrando a monotonia do sertão, parecia acompanhar o peso daquela revelação. A justiça, afinal, seria buscada. Mas em que moldes, e com que consequências, ela não teria mais tempo de saber.


Por: Marina Rocha Antunes

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