Um mergulhador que encontra uma cidade submersa habitada por seres sombrios.
O Mar de Dentro
O sol da manhã, ainda tímido, beijava a crista das ondas preguiçosas da Baía de Guanabara. A brisa, com o cheiro salgado e a promessa de maresia, trazia também um sopro de diesel das barcas que cruzavam o espelho d’água. Léo ajustou a máscara, sentindo o borrife frio em seu rosto enrugado pela vida. Aos cinquenta e tantos anos, a busca pelo tesouro que lhe tirava o sono era, na verdade, a busca por algo mais intangível: um sentido, talvez, um eco de um tempo em que a vida parecia mais leve, menos marcada pelas contas a pagar e pelas promessas quebradas.
O pequeno barco, apelidado carinhosamente de “Malhação”, balançava suavemente, um fiapo de esperança na vastidão azul que Léo conhecia como a palma da sua mão. Ali, entre os naufrágios de navios de guerra e os restos esquecidos do porto antigo, ele esperava encontrar mais do que só objetos de bronze oxidados. Ele buscava uma resposta para a melancolia que o assombrava, um fantasma mais persistente que o de qualquer marujo afogado.
Mergulhou. O som do respirador se tornou o único companheiro, uma batida rítmica que acalmava o turbilhão interno. A luz do sol se desfazia em feixes etéreos, dançando entre algas e peixes prateados que passavam indiferentes. Léo se moveu com a familiaridade de quem nasceu no mar, suas mãos experientes guiando-o pelos labirintos submersos. Mas hoje, algo era diferente. Uma corrente sutil, um murmúrio quase imperceptível, o puxava para um lugar que ele não reconhecia.
E então, ela surgiu. Não era um naufrágio, nem um cardume incomum. Era uma arquitetura. Blocos de pedra escurecida, polida pelo tempo e pela água, se empilhavam em ângulos estranhos, formando paredes que pareciam abraçar um vazio. Uma praça, talvez. Uma entrada. A curiosidade, mais forte que o instinto de sobrevivência, o impeliu adiante.
À medida que se aproximava, sombras começaram a se formar nos recantos escuros. Não eram a ausência de luz comum do abismo. Eram presenças. Figuras esguias, com movimentos fluidos e desprovidos de qualquer angularidade humana. Seus olhos, onde deveriam estar, brilhavam com uma luz fria e opalescente, fixa nele. Não havia medo em Léo, apenas um fascínio aterrorizado. Ele, que vira as profundezas do oceano se tornarem um cemitério de destroços e silêncios, agora se deparava com um silêncio vivo, habitado.
Um dos seres se moveu mais perto. Era alto, magro, com membros que se estendiam de forma antinatural. Léo sentiu uma pressão no peito, não física, mas psíquica. Uma comunicação sem palavras, um desfile de imagens e sensações que invadiram sua mente como uma maré impetuosa. Ele viu a cidade em seu auge, vibrante, mas as cores eram sombrias, os sons, agudos e dissonantes. Viu o declínio, a lenta decadência, e a inevitável descida para as águas. E, de alguma forma, compreendeu: eles não eram fantasmas, mas sobreviventes, adaptados à escuridão, moldados pela ausência de sol, de esperança.
Um dos seres estendeu uma mão, ou algo que se assemelhava a uma mão, uma teia translúcida que parecia pulsar com uma energia gélida. Léo sentiu o toque, e em vez de frio, uma vertigem de memórias alheias o atingiu. A saudade de um sol que nunca sentiram, a dor de uma vida que se esvaiu lentamente, a aceitação de um destino que os aprisionara em seu próprio limbo aquático. A melancolia que o perseguia na superfície parecia insignificante diante daquela dor primordial.
Ele olhou para suas mãos, enrugadas e manchadas de sal, as mesmas que haviam guiado barcos, segurado um filho que agora estava longe, lutado para sobreviver. E de repente, a cidade submersa, com seus habitantes sombrios, não parecia tão alienígena. Havia ali uma profundidade de desespero, uma resiliência de existências que ele podia, de alguma forma, entender.
A corrente começou a empurrá-lo para trás. As figuras sombrias o observavam partir, seus olhos luminosos parecendo carregar um pesar ancestral. Léo emergiu, o ar salgado e a luz do sol o cegando por um instante. Sentou-se no barco, o corpo tremendo não de frio, mas de uma emoção profunda e incômoda. Olhou para a superfície da água, para o céu azul que antes lhe parecia tão familiar e reconfortante. Agora, ele sabia, havia outras vidas lá embaixo, outras tristezas, outras formas de existir. E a pergunta que o assombrava não era mais sobre tesouros, mas sobre a própria natureza da vida, da perda, e do que realmente significa estar perdido. A cidade submersa e seus habitantes sombrios haviam lhe mostrado um reflexo inesperado, um mar de dentro, onde a escuridão podia abrigar mais do que apenas vazio. E Léo sabia que, de alguma forma, ele carregaria aquele encontro consigo, para sempre, como uma tatuagem invisível sob a pele.
Por: Isabela Fernandes Couto

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