Um mapa que leva a um lugar perigoso e desconhecido.

Um mapa que leva a um lugar perigoso e desconhecido.

O Som do Gelo Rachando

A poeira avermelhada grudava nas solas dos meus tênis surrados, cada passo um lembrete da secura que dominava o sertão em pleno agosto. O sol, implacável, pintava o céu de um azul quase branco, e o ar tremeluzia sobre a caatinga espinhosa. Eu era João, um matuto de vinte e poucos anos, com mais vontade do que juízo, filho de Dona Lúcia, uma mulher que cheirava a terra molhada e orvalho da manhã, mesmo nas estiagens mais cruéis.

Tudo começou com um baú velho, esquecido no sótão da casa da minha avó, uma construção que parecia ter nascido do barro e se abraçado à terra. Entre rendas amareladas e fotos desbotadas de rostos que eu mal conhecia, encontrei-o: um mapa. Não era um mapa qualquer, desses que mostram estradas e cidades. Era desenhado à mão, em um papel que rangia sob os dedos, com linhas tortas e símbolos estranhos. No centro, um X vermelho desbotado e, ao lado, uma palavra: “Sombrio”.

Meu avô, Seu Elias, era um homem de poucas palavras e muitos mistérios. Morreu anos antes de eu nascer, levado por uma febre que a medicina da época não soube deter. Diziam que ele tinha um pacto com a terra, que entendia o murmúrio das pedras e o lamento do vento. Esse mapa, pensei, era dele.

A curiosidade me roía por dentro como cupim em madeira seca. O “Sombrio”. O que seria? Um lugar escondido? Uma lenda? Dona Lúcia, ao ver o mapa, empalideceu. “Isso é coisa do teu avô, João. Coisa que não devia ser remexida.” Sua voz trêmula carregava um peso que eu não conseguia decifrar.

Mas o sertão, apesar de árido, pulsa com a promessa de novidade. E o “Sombrio” sussurrava em meus ouvidos como uma miragem de água. Comecei a decifrar os símbolos com a ajuda de um velho livro de herbário que meu avô deixara. A lua crescente indicava uma noite específica. A espiral, um labirinto natural. E uma figura que lembrava uma cascavel, um aviso.

Enfrentei a resistência silenciosa de Dona Lúcia, a preocupação nos olhos das vizinhas que me viam com um alforje simples, água e a determinação teimosa de quem busca algo que nem sabe o que é. Parti ao amanhecer, o sol ainda preguiçoso, prometendo voltar com respostas.

A jornada foi dura. O terreno se tornava mais acidentado a cada quilômetro. A vegetação mudava, as cactáceas davam lugar a árvores retorcidas e com copas sombrias, mesmo sob o sol forte. O cheiro era diferente, um misto de terra úmida e algo metálico, quase como sangue seco. Os sons da caatinga, antes familiares, pareciam se afastar, substituídos por um silêncio inquietante.

Segui as indicações do mapa, que me levavam por trilhas quase inexistentes, por fendas em rochas imponentes que pareciam gargantas engolindo a luz. Uma noite, sob o céu estrelado que aqui se exibe com uma intensidade assustadora, encontrei o labirinto de pedras. A lua, exatamente como no mapa, lançava sombras que dançavam e criavam ilusões. Meus passos eram hesitantes, o coração batendo contra as costelas como um tambor desgovernado. O silêncio era tão espesso que eu podia ouvir o eco dos meus próprios pensamentos.

E então, no centro do labirinto, lá estava. Não era um tesouro, nem uma fonte de água milagrosa. Era uma clareira, e no meio dela, uma rocha negra e lisa, como um espelho escuro. Ao seu redor, plantas estranhas, de um verde tão escuro que parecia absorver a luz, com folhas que brilhavam com um orvalho prateado. Um frio que não era de temperatura subiu pela minha espinha. O ar pesava, carregado de uma energia antiga, quase opressiva.

O mapa não levava a um lugar, mas a um estado. Uma porta. A cascavel, o aviso. Era o “Sombrio”. Uma quietude que escondia algo pulsante, algo que não pertencia ao mundo que eu conhecia. Eu sentia o chamado, uma atração perigosa, como um inseto hipnotizado pela luz de uma lâmpada. Olhei para a rocha, para as plantas estranhas.

O medo me paralisou por um instante, um medo primitivo, ancestral. Mas a curiosidade, a mesma que me trouxe até ali, era mais forte. E se meu avô tivesse encontrado algo mais do que apenas um lugar? E se ele tivesse encontrado uma resposta para a febre, para os mistérios da vida e da morte?

Levei a mão em direção à rocha negra. O ar em volta dela vibrava. O que eu encontraria ali? O fim de tudo? O início de algo inimaginável? Um eco distante, quase um sussurro, parecia me chamar de dentro daquela imensidão sombria. O que seria o “Sombrio” para mim? E o que eu seria para ele? A decisão pairava no ar rarefeito, pesada como o silêncio que me cercava. E o frio que emanava da rocha parecia o som do gelo rachando, um prenúncio de algo que estava prestes a se quebrar.


Por: Ricardo Soares Guedes

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