Um laboratório secreto que estudava a mente humana e seus medos.
O cheiro era uma mistura agridoce de álcool isopropílico e café requentado, um aroma que se impregnara nas paredes descascadas e nos móveis de metal frios do laboratório. Não era um lugar de lustros ou tecnologia de ponta; era um porão anônimo, escondido sob uma lavanderia em Copacabana, onde o barulho constante das máquinas de lavar lá em cima era a trilha sonora para os sussurros e os equipamentos eletrônicos discretos. Era ali que Elias, com seus óculos de aro grosso escorregando pelo nariz e as olheiras profundas como marcas de nascença, passava a maior parte de suas noites.
Ele não era um cientista de laboratório tradicional. Elias era um terapeuta com uma sede insaciável de entender o abismo que assombrava a mente humana. Seu projeto, batizado de “Projeto Sombra”, era uma tentativa de mapear, dissecar e, quem sabe, domar os medos mais primordiais. Não o medo de baratas ou de alturas, mas aqueles medos difusos, as angústias que nos paralisavam na calada da noite, aqueles sussurros de “e se” que podiam corroer a alma.
Acompanhava Elias, a Dra. Lena, uma psiquiatra com um pragmatismo que beirava o cinismo, mas que escondia, por trás de sua fachada fria, uma empatia que raramente demonstrava. Lena era a âncora de Elias, a voz da razão quando a obsessão ameaçava engoli-lo. Havia também, a figura enigmática de Clara, uma voluntária que se ofereceu para o experimento, movida por uma curiosidade sombria e uma dor pessoal que ela se recusava a verbalizar. Clara, com seus olhos grandes e expressivos que pareciam carregar o peso de todas as tristezas do mundo, era o objeto de estudo mais intrigante.
Uma noite, o ar do laboratório parecia mais denso. Clara estava conectada aos eletrodos, em um estado de semi-consciência induzida. Elias observava os monitores, buscando padrões, as flutuações sutis que indicavam a tempestade que se formava na mente de Clara. Lena, encostada na porta, observava Elias com uma expressão indecifrável.
“O que você espera encontrar, Elias?”, perguntou Lena, sua voz um fio discreto no zumbido constante.
Elias não tirou os olhos dos monitores. “A raiz. A fonte. O momento em que o medo se torna uma força autônoma, capaz de moldar a realidade.”
De repente, os monitores começaram a emitir um sinal agudo. O padrão de Clara mudou drasticamente. Seus músculos se contraíram, um murmúrio escapou de seus lábios. Elias se aproximou, o coração disparado.
“Clara? O que você está sentindo?”, ele perguntou, a voz suave, quase um sussurro.
Clara abriu os olhos lentamente. Não eram os olhos de Clara que Elias conhecia. Eram profundos, sombrios, cheios de uma angústia antiga. Ela não o reconheceu.
“Ele está aqui”, disse ela, a voz distorcida. “O que me tirou tudo.”
Elias e Lena trocaram um olhar. O experimento estava indo para um território desconhecido. Eles não estavam apenas estudando medos genéricos; estavam desenterrando algo pessoal, algo que Clara havia enterrado tão fundo que até ela mesma parecia ter esquecido.
Os dias seguintes foram um turbilhão. Clara, mesmo fora do estado induzido, começou a reviver fragmentos de seu passado, visões vívidas de perdas e arrependimentos que Elias e Lena lutavam para compreender. Elias mergulhava em livros antigos, em teorias esquecidas, buscando conexões. Lena, por sua vez, tentava trazer Clara de volta à realidade, focando em exercícios de grounding, em pequenas vitórias do cotidiano.
Uma tarde, enquanto Elias estava absorto em anotações, Clara se aproximou dele. Ela segurava um pequeno objeto de metal, enferrujado e desgastado pelo tempo.
“Eu o perdi”, disse Clara, a voz embargada. “Aquele dia. Ele o levou.”
Elias olhou para o objeto. Parecia um medalhão antigo, com um entalhe quase apagado. Ele reconheceu o símbolo. Era um antigo talismã de proteção, algo que ele mesmo usava quando era criança, presente de sua avó.
Lena, ao lado, franziu a testa. “Clara, o que é isso?”
Clara olhou para Elias, seus olhos marejados. “Você se lembra, Elias? Daquela casa na serra? Daquela noite escura?”
O corpo de Elias congelou. A casa na serra. A noite escura. Um fragmento de memória, enterrado por anos, começou a emergir. Um pequeno garoto, correndo pelo mato, assustado. Uma sombra, indistinta, mas ameaçadora. O sentimento avassalador de impotência.
“Eu… eu não sei…”, Elias gaguejou, uma sensação fria percorrendo sua espinha.
Clara assentiu, como se esperasse essa resposta. “Todos temos nossos medos, Elias. E todos temos aqueles que nos moldam.” Ela devolveu o medalhão para Elias. “Alguns medos, nós criamos. Outros, nos são impostos. A questão é: o que fazemos com eles?”
A sala ficou em silêncio, apenas o zumbido dos equipamentos ecoando na quietude. Elias segurava o medalhão em suas mãos, sentindo o peso do metal frio contra sua pele. Ele olhou para Clara, para Lena, para as paredes descascadas do laboratório. A linha entre observador e observado, entre o medo estudado e o medo vivenciado, havia se tornado perigosamente tênue. O Projeto Sombra não estava apenas desvendando os medos de Clara, mas também desenterrando os dele. O porão, antes um refúgio contra o mundo, agora parecia um espelho amplificado das próprias sombras que ele jurou compreender. E ele sabia, com uma certeza assustadora, que essa era apenas a primeira camada.
Por: João Pedro Silveira

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