Um jovem herda uma herança amaldiçoada que atrai criaturas etéreas para sua casa.

Um jovem herda uma herança amaldiçoada que atrai criaturas etéreas para sua casa.

O Vento das Sombras no Morro do Saboó

O cheiro de mofo e naftalina ainda pairava no ar quando Léo pisou na sala da casa que agora era sua. O sofá de veludo puído parecia suspirar, e a luz fraca que entrava pela janela, filtrada pela poeira suspensa, pintava o ambiente com tons de ocre e saudade. Era o legado de dona Lurdes, sua tia-avó distante, uma mulher que ele mal conhecia, mas cujas cartas antigas, cheias de um carinho que nunca se concretizou, eram agora o único elo. A herança, diziam os advogados, era modesta: a casa no Morro do Saboó, um bairro que lutava contra o tempo e a negligência, e um cofre antigo, de latão enferrujado, trancado com um cadeado que parecia ter visto a Segunda Guerra Mundial.

A primeira semana foi um mergulho no passado da tia Lurdes. Caixas e mais caixas empilhadas, fotografias desbotadas de rostos esquecidos, e um acervo impressionante de livros de capa dura, a maioria sobre botânica e folclore regional. Léo, um designer gráfico recém-formado e desempregado na capital paulista, via naquela mudança forçada uma fuga, uma oportunidade de recomeçar longe do burburinho insuportável e das expectativas frustradas. O Morro do Saboó, com suas ruas sinuosas e casas coloridas que se agarravam à encosta, parecia oferecer um refúgio.

A primeira noite em que algo “diferente” aconteceu, Léo atribuiu à solidão e ao cansaço. Um sussurro, tênue como o farfalhar de folhas secas, pareceu dançar no limite da audição. Ele ignorou, atribuindo ao vento que assobiava nas frestas da janela antiga. Mas os sussurros voltaram, acompanhados por sombras que se alongavam de forma não natural, dançando nas paredes antes de se dissiparem. A casa, outrora silenciosa, parecia agora respirar com uma presença indescritível.

O cofre foi a chave para tudo. Após dias de busca, Léo encontrou a pequena chave ornamentada escondida dentro de um tinteiro antigo. O latão rangiu em protesto ao ser aberto, revelando não ouro ou joias, mas um diário encadernado em couro e um objeto estranho: um amuleto feito de obsidiana polida, incrustado com desenhos que pareciam veios de galáxias distantes. O diário era a caligrafia de dona Lurdes, um relato cada vez mais frenético de suas experiências. Ela descrevia “visitantes”, seres de luz opaca, presenças que se manifestavam nas horas de maior solidão, atraídos por algo que ela não compreendia, algo que ela acreditava ter se intensificado após a aquisição de um certo item de uma antiquária excêntrica no centro de Santos.

Léo sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A obsidiana. Ele a segurou nas mãos, sentindo um frio que não era apenas físico, mas que parecia penetrar até os ossos. As sombras na casa se tornaram mais definidas, assumindo formas que lembravam figuras humanas, mas etéreas, translúcidas, como se estivessem feitas de fumaça colorida e luz fraca. Elas não pareciam hostis, mas imensamente curiosas, observadoras. Uma delas, com a silhueta vagamente feminina, pairou sobre a poltrona onde ele lia o diário, seus contornos se moldando como se tentasse imitar o gesto da mão de Léo sobre o papel.

A solidão de Léo, que antes buscava consolo, agora era amplificada pela companhia silenciosa e desconcertante. Ele passou a dormir com a luz acesa, o coração acelerado a cada ruído, a cada sombra que se movia. O cheiro de mofo deu lugar a um aroma sutil, etéreo, como de flores noturnas inexistentes.

Ele tentou vender o amuleto, mas nenhuma antiquária parecia se interessar por ele, algumas até demonstravam um estranho desconforto ao tocá-lo. A casa, antes um refúgio, tornou-se um palco. As criaturas, cada vez mais audaciosas, começaram a interagir com os objetos. Livros eram abertos em páginas aleatórias, chaves sumiam e reapareciam em lugares inusitados, e a música da velha vitrola parecia ecoar sem que ele a ligasse.

Léo se viu diante de um dilema cruel. A herança, que deveria ser um recomeço, era agora uma fonte de isolamento e medo. Ele se sentia um guardião de algo que não entendia, preso a um legado que o conectava a um universo alheio e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar. Ele tentava decifrar as últimas anotações de dona Lurdes, que falavam de aceitação, de um convite, de um limiar a ser cruzado.

Uma noite, enquanto observava a figura translúcida sentada à sua frente, a mesma que parecia imitar seus gestos, Léo pegou um pincel e um pedaço de papel. Hesitou por um longo momento, sentindo o olhar invisível sobre ele. Então, com as mãos trêmulas, começou a desenhar. Não as formas reconhecíveis, mas a essência, a luz tênue, os contornos fugazes. Ao terminar, sentiu um alívio estranho, como se tivesse finalmente respondido àquela presença silenciosa.

A criatura observou o desenho, e pela primeira vez, Léo sentiu uma espécie de reconhecimento, uma vibração que parecia ecoar no ar. Ela estendeu um apêndice etéreo em direção ao papel, e quando o tocou, as linhas do desenho pareceram ganhar vida própria, pulsando com uma luz suave.

Na manhã seguinte, Léo acordou sentindo-se diferente. As sombras ainda estavam lá, mas não causavam mais o mesmo pavor. Elas pareciam mais serenas, quase pacíficas. O diário de dona Lurdes estava aberto em uma página em branco. Léo pegou o pincel novamente, mas desta vez, não para desenhar as criaturas, mas para registrar o que elas lhe ensinavam sobre a solidão, sobre a presença do invisível, sobre a linha tênue que separa o nosso mundo do que jaz além. Ele olhou para a janela, para as cores vibrantes do Morro do Saboó, e se perguntou para onde esses sussurros o levariam a seguir.


Por: Ricardo Soares Guedes

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