Um jogo de tabuleiro que atrai jogadores para um perigo real.

Um jogo de tabuleiro que atrai jogadores para um perigo real.

O Tabuleiro das Sombras

O calor úmido de Salvador colava a camisa de Lúcia nas costas enquanto ela descia do ônibus, o cheiro de maresia misturado ao de manga madura pairando no ar. Era sábado, e o ritual de todo fim de semana se anunciava: o encontro na casa de Dona Carmem, na Gamboa, para jogar. Mas este sábado tinha um sabor diferente.

Na sala de estar, o ar condicionado lutava contra o sol que se espremia pelas venezianas. As faces de sempre estavam lá: Marcos, com seu riso fácil e olhos sempre atentos; Sofia, a mais nova do grupo, com sua inquietude juvenil; e Rafael, o mais velho, o guardião das regras, o homem de poucas palavras, mas de sabedoria ancestral. O quinto lugar à mesa, porém, estava ocupado por um objeto estranho.

Era um tabuleiro de madeira escura, com entalhes intrincados que pareciam sussurrar histórias antigas. As peças eram figuras de argila, rústicas e expressivas, cada uma com uma marcação peculiar. Ninguém sabia de onde viera. Dona Carmem, com seus oitenta anos e memória em constante ebulição, jurava que o achara num brechó em Porto da Barra, empoeirado e esquecido. Chamava-o de “O Tabuleiro das Sombras”.

Marcos, sempre o primeiro a se jogar nas novidades, pegou uma peça que representava um jagunço com a barba desalinhada. “E aí, dona Carmem? Que jogo é esse? Parece coisa de filme de terror.”

Dona Carmem sorriu, um sorriso que escondia mais do que revelava. “É um jogo de escolhas, meu filho. De consequências.”

A primeira partida começou com a leveza de uma brisa. As regras eram confusas, mas a intuição guiava as jogadas. Cada escolha no tabuleiro se traduzia em uma pergunta, um dilema apresentado em uma carta que Dona Carmem tirava de um pequeno saco de linho. A primeira pergunta de Marcos, ao mover seu jagunço, foi: “Você ajudaria um estranho em apuros, mesmo sabendo que isso pode te colocar em risco?”. Ele, com sua generosidade habitual, respondeu “sim”.

No dia seguinte, enquanto voltava para casa, Marcos viu um homem pedindo carona com o pneu furado. A lembrança da carta do tabuleiro o fez hesitar por um instante. Mas ele parou. Ajudou o homem, que se mostrou agradecido e lhe deu uma pequena quantia em dinheiro. “Coincidência”, pensou Marcos, abanando a cabeça.

Sofia, com sua impaciência e sede por novidades, escolheu uma peça que lembrava uma feiticeira. Sua pergunta era: “Você mentiria para proteger alguém que ama?”. A resposta dela foi um rápido “sim”. Na semana seguinte, a escola divulgou notas. A de Sofia, que ela esperava ser alta, estava baixa. Assustada com a bronca que viria, ela mentiu para os pais, dizendo que a professora havia esquecido de lançar a nota. Dias depois, um colega de classe, que também havia mentido sobre suas notas, foi descoberto e sofreu as consequências. Sofia, sentiu um aperto no estômago.

Rafael, com sua peça que simbolizava um ancião sábio, recebeu a pergunta: “Você cederia o seu lugar para alguém que precisa mais, mesmo que isso signifique sacrifício pessoal?”. Ele, com sua serenidade habitual, respondeu “sim”. Na semana seguinte, o vizinho de Dona Carmem, um idoso doente, precisou de um transporte urgente para o hospital. Rafael, que tinha um carro recém-revisado e estava planejando uma viagem, abriu mão do passeio e levou o vizinho.

Os jogos continuaram. E as “coincidências” se tornavam cada vez mais frequentes, mais intensas. A cada escolha no tabuleiro, uma reflexão se acendia, e no mundo real, um eco se manifestava. Um convite para um emprego que parecia perfeito, mas que envolvia práticas questionáveis. Uma briga de rua onde a decisão de intervir ou não trazia consequências inesperadas. Um amor que se revelava uma armadilha.

Lúcia, que até então observava com um misto de fascínio e apreensão, pegou sua peça: uma baiana com um tabuleiro nas costas. Sua pergunta, ao mover a peça, foi: “Você abriria mão de um sonho antigo para abraçar uma nova oportunidade, mesmo que incerta?”. O silêncio se instalou na sala. Lúcia, em sua vida, se sentia estagnada, presa a um emprego que não lhe trazia alegria, mas lhe garantia segurança.

O dilema era palpável. A segurança vs. a incerteza do sonho. O conforto do conhecido vs. o medo do desconhecido. Os olhos dos amigos se voltaram para ela, cada um com sua própria batalha interna replicada nas escolhas que já haviam feito.

Dona Carmem observava tudo, os olhos fixos nas faces dos jovens, nas sombras que se alongavam na sala. O tabuleiro, com seus entalhes sinistros, parecia vibrar com a tensão.

Lúcia respirou fundo, o cheiro de manga agora misturado a um leve aroma de incenso que Dona Carmem acendera. Olhou para o tabuleiro, para as peças, para os rostos de seus amigos, e sentiu o peso de cada escolha, não apenas a sua, mas as deles também. O que viria depois? Uma nova oportunidade, mas a que custo? Ou a segurança, mas a que preço de um futuro não vivido?

O tabuleiro esperava. E o mundo, lá fora, também.


Por: João Pedro Silveira

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