Um hotel onde os quartos mudam e desaparecem.
O Edifício Celeste
As cortinas de voil desbotado no quarto 302 do Edifício Celeste sempre chiavam num lamento familiar quando Ana as abria. A luz fraca da manhã de São Paulo, filtrada pela poeira que pairava no ar, delineava a mobília gasta: um guarda-roupa de madeira escura com um espelho trincado no centro, uma cômoda com gavetas que rangiam e a cama com um colchão afundado que guardava as noites de sono inquieto de tantos hóspedes. Mas hoje, Ana sentiu o chãos diferente sob seus pés descalços. Menos liso. Uma textura de madeira bruta, imperfeita. Ela olhou para baixo e viu tábuas escuras, irregulares. As cortinas, antes num tom de creme amarelado, eram agora de um azul profundo, pesadas, quase impermeáveis à luz.
O Edifício Celeste não era um hotel qualquer, pelo menos para quem o frequentava há tempo. Era um segredo sussurrado, um lugar de pouso temporário onde o tempo e o espaço pareciam ter vida própria. Ana, uma advogada com olheiras permanentes e um coração que insistia em guardar mágoas, vinha para lá quando a cidade a sufocava, quando o peso das decisões se tornava insuportável.
Ontem, o quarto 302 tinha a vista para um muro de concreto cinzento. Hoje, uma janela alta e arqueada se abria para um céu de um azul tão intenso que doía olhar, pontilhado de nuvens que pareciam feitas de algodão doce. Um canto de pássaro distante, límpido e melodioso, irrompeu no silêncio. Ana se aproximou, o coração acelerado por uma mistura de estranheza e uma ponta de esperança. Era um pássaro que ela nunca tinha ouvido em São Paulo.
No café da manhã, no salão que também mudava de lugar dentro do prédio, encontrando-se ora no subsolo com um cheiro de mofo e café forte, ora no terraço com a brisa fresca e vista para a Avenida Paulista, Ana sentou-se em uma mesa de madeira maciça. Sentada à mesa ao lado, Dona Ivone, uma senhora de cabelos brancos impecavelmente arrumados e um olhar de sabedoria serena, tomava seu café com biscoitos de polvilho.
“Bom dia, minha filha”, disse Dona Ivone, com um sorriso gentil. “O sol hoje está generoso, não é mesmo?”
Ana hesitou. Ontem, Dona Ivone chorava baixinho ao lado dela, falando de um filho que partira sem dizer adeus. Hoje, parecia outra pessoa. “Bom dia, Dona Ivone. Sim, está.”
“Acontece”, continuou Dona Ivone, sem se aprofundar, como se a mudança fosse parte da rotina do Celeste. “Os quartos, as vistas, as pessoas… tudo encontra seu lugar. Por um tempo.”
Havia outros no salão. Um jovem músico, com os dedos manchados de tinta e um violão surrado aos pés, que Ana vira na noite anterior compondo melodias melancólicas no corredor. Hoje, ele ria alto com uma moça de cabelos tingidos de violeta, compartilhando um prato de frutas exóticas que Ana nunca vira em feiras de bairro.
Ana sentia uma inquietude crescente. O quarto 302 de ontem, com seu cheiro de naftalina e uma rachadura no teto que parecia um mapa de um continente desconhecido, a acolhera em sua vulnerabilidade. Aquele quarto se tornara um refúgio para suas lágrimas contidas. Agora, o quarto novo, com sua beleza inesperada, parecia zombar de sua necessidade de um espaço para a dor.
No final da tarde, Ana decidiu que precisava de um pouco de ar. Subiu as escadas, procurando a saída para a rua. Mas as escadas pareciam se alongar, as paredes se movendo suavemente, criando novos corredores. Onde antes havia um portal para o exterior, agora havia uma porta de ferro enferrujado que levava a um jardim interno secreto, com samambaias gigantes e um pequeno lago onde peixes dourados nadavam em círculos preguiçosos.
Ela se sentou em um banco de pedra úmido, observando o movimento sutil das folhas. A ânsia de voltar para seu quarto, para a previsibilidade familiar daquela nova beleza, a assaltou. Mas a beleza inesperada do jardim era, de certa forma, reconfortante. Talvez a vida fosse assim: um quarto que desaparece, uma vista que se transforma, um pássaro que canta uma melodia desconhecida.
Quando voltou ao Edifício Celeste, o sol já se punha, tingindo o céu de laranjas e rosas. Ela abriu a porta do quarto 302.
O quarto estava vazio. Não havia mobília, nem cortinas, nem janelas. Apenas quatro paredes nuas e um chão de terra batida. No centro do cômodo, um único objeto repousava: uma pequena caixa de música, feita de madeira escura, sem adornos.
Ana se aproximou, o coração batendo forte em seu peito. Com os dedos trêmulos, abriu a tampa. Uma melodia delicada e familiar começou a tocar, uma canção de ninar que sua mãe costumava cantar. O cheiro de naftalina, a rachadura no teto, a sensação do colchão afundado… tudo voltou com a força de uma onda.
Ela fechou os olhos, as lágrimas correndo em silêncio. No Edifício Celeste, os quartos não simplesmente mudavam ou desapareciam. Eles levavam consigo fragmentos de quem os habitou, transformando-se para acolher novas histórias, novas dores e novas esperanças. Ana se perguntou se, um dia, seu próprio quarto se tornaria um lugar de terra batida, guardando apenas a memória de uma melodia. E se, ao abrir a porta do seu próprio vazio, encontraria não uma caixa de música, mas um novo horizonte.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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