Um grupo de voluntários encontra um corpo durante um mutirão de limpeza na mata.

Um grupo de voluntários encontra um corpo durante um mutirão de limpeza na mata.

O sol da manhã, preguiçoso, mal conseguia furar a espessa cortina de folhas que cobria a trilha. O cheiro de terra úmida, folhas em decomposição e um leve aroma adocicado de flores silvestres pairava no ar da mata que margeava o Rio Paraopeba, um local que, para os moradores de Capelinha, era sinônimo de lazer e um refúgio dos tons de cinza da cidade.

Dona Lourdes, com seus cabelos grisalhos presos num coque frouxo e um sorriso que teimava em não descer do rosto, liderava o grupo de voluntários. Tinham vindo pela terceira vez naquele ano para recolher o lixo que as enchentes e a negligência haviam deixado para trás. Eram uma mistura curiosa: estudantes com seus sapatos de trilha impecáveis, aposentados com a energia de quem já viu muito e decidiu fazer algo, e gente como ela, gente comum, acostumada a ver a beleza nas coisas simples e a tentar mantê-la.

“Atenção, pessoal!”, a voz de Dona Lourdes soou, um pouco abafada pelo barulho de pássaros desconhecidos. “Vamos descer um pouco mais por essa clareira. Parece que tem um monte de coisa jogada ali perto do barranco.”

Seguiram o caminho, a mata se tornando mais densa. O som dos seus passos sobre folhas secas e galhos quebrados era o único que quebrava o silêncio dos bichos. Foi o jovem Tiago, com seus vinte e poucos anos e um otimismo contagiante, que o viu primeiro.

“Eh… pessoal?”, a voz dele vacilou, perdendo um pouco do seu habitual vigor. Ele apontou, com a mão que segurava um saco de lixo agora esquecido.

A princípio, parecia apenas mais um monte de entulho. Plásticos coloridos, latas enferrujadas. Mas, ao se aproximarem, a forma se tornou mais nítida, mais humana. Era um corpo. Deitado de lado, com as roupas desbotadas e sujas de terra, quase camuflado pela vegetação rasteira.

Um silêncio pesado caiu sobre o grupo, um silêncio denso e impenetrável, diferente do silêncio natural da mata. As conversas cessaram. O barulho dos pássaros parecia ter se calado por um instante. Só restava a respiração ofegante de alguns, o leve tremor das mãos que largaram suas ferramentas de limpeza.

Dona Lourdes sentiu um frio subir pela espinha. Ela já havia visto muita coisa em seus sessenta e tantos anos, mas aquilo, ali, no meio da mata que ela tanto amava, era diferente. Era uma ferida aberta na terra, um segredo sombrio que a natureza tentava esconder.

Maria Eduarda, uma das estudantes, cobriu a boca com as mãos, seus olhos arregalados fixos no corpo. A animação de limpar e revitalizar o local deu lugar a um misto de horror e incredulidade. O mundo parecia ter parado. O cheiro adocicado das flores silvestres agora se misturava a um odor metálico e pungente que ela não conseguia identificar de imediato, mas que reconheceu como algo… errado.

“Meu Deus…”, sussurrou o professor Adalberto, um historiador que participava dos mutirões como uma forma de se reconectar com suas origens rurais. Ele era um homem de fala mansa, mas a gravidade da situação lhe roubara as palavras.

Tiago, superando o choque inicial, foi o primeiro a reagir de forma mais prática. “A gente… a gente tem que ligar para a polícia, né?”

A pergunta pairou no ar, óbvia e, ao mesmo tempo, terrivelmente pesada. Ligar para a polícia significava quebrar a aura de paz e isolamento que a mata oferecia. Significava trazer a dor e a violência do mundo exterior para aquele refúgio verde.

Dona Lourdes, com a voz embargada, disse: “Sim, Tiago. Liguem. E… tentem não tocar em nada, por favor.”

Enquanto Tiago buscava o sinal fraco de seu celular, os outros voluntários se afastaram lentamente do corpo, como se estivessem se afastando de uma energia sinistra. Observavam o local com um novo olhar, um olhar que agora via a fragilidade, a vulnerabilidade. A mata, antes um palco de beleza natural, tornara-se um palco de um drama silencioso, um segredo guardado por árvores antigas e pelo murmúrio do rio.

O sol finalmente rompeu com mais força, lançando raios dourados que, em vez de trazerem calor, pareciam realçar a sombra da descoberta. O mutirão de limpeza havia se transformado em uma autópsia involuntária da realidade, uma lembrança cruel de que a beleza da natureza muitas vezes esconde as marcas mais profundas da existência humana. E eles, os voluntários, agora carregavam consigo não apenas sacos de lixo, mas o peso de um corpo e de perguntas sem respostas que a mata se recusava a revelar. A cicatriz na terra agora se gravava, sutilmente, em suas próprias almas.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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