Um fotógrafo que captura imagens de algo que não deveria existir.
O Fio Invisível
O cheiro de café coado e poeira era a primeira saudação de Maricá ao amanhecer. Miguel, com seus quarenta e poucos anos, conhecia cada curva daquela praia, cada nuance do sol que beijava as gaivotas. Sua câmera, uma Nikon antiga que carregava o peso de anos de memórias, era uma extensão do seu olhar, sempre à procura da fagulha de beleza nas coisas banais. Cestas de peixe coloridas, a pele enrugada de um pescador, o reflexo fugaz de um carro na poça d’água. Ele fotografava o palpável, o real.
Até que um dia, algo mais apareceu. Não era um objeto, nem uma pessoa. Era… uma cor. Uma cor que ele não sabia nomear, vibrante como um arco-íris esquecido pela chuva, mas etérea, como um véu translúcido pairando no ar. A primeira vez foi perto do Canto do Morcego, onde as pedras se encontravam com a água salgada. Uma leve distorção no espaço, um pulso de luz que sua lente capturou com precisão assustadora. Ele revisou a imagem em casa, o coração martelando no peito. A cor estava lá, nítida, impossível.
Nas semanas seguintes, as aparições se tornaram mais frequentes, sempre em momentos de quietude, de transição. No silêncio da madrugada, enquanto esperava o sol pintar o horizonte. Na névoa que abraçava a cidade antes do calor se impor. Em cantos esquecidos da cidade, onde a vida seguia seu curso alheio aos seus novos registros. Ele fotografava. Desesperadamente. Tentava entender.
Um dia, a cor se materializou perto de Dona Elza, a vendedora de açaí na esquina. Miguel a conhecia há anos. Seu sorriso, apesar das rugas e das longas horas sob o sol, era um farol de gentileza. Ele viu a cor, tênue, emanando de suas mãos enquanto ela preparava a tigela com o creme roxo vibrante. Miguel hesitou. Deveria fotografar? O que aquilo significava?
O dilema o corroía. Sua arte sempre foi sobre revelar o que é, não o que parece ou o que não deveria ser. Essa cor era uma mentira visual? Um defeito na percepção humana? Ou algo mais? Algo que ele, com sua busca incessante pela verdade nas entrelinhas, estava tropeçando?
Ele começou a observar as pessoas. Tentava sentir se elas também viam algo. Tentava decifrar olhares, silêncios. Ninguém. O mundo seguia em frente, indiferente às cores espectrais que Miguel teimava em capturar.
Uma noite, sentado na varanda da sua casa modesta, com o som das ondas embalando a solidão, Miguel olhou para as fotos impressas. Eram belas. As cores impossíveis dançavam em contraste com a realidade crua de Maricá. Ele sentiu um medo crescente, mas também uma atração irresistível. Era como se tivesse encontrado uma porta para um universo paralelo, e estivesse, sozinho, com sua câmera, bisbilhotando.
No dia seguinte, enquanto fotografava um casal de idosos caminhando de mãos dadas na praia, viu a cor. Desta vez, mais forte, vibrante, envolvendo os dois como um halo invisível. Ele levantou a câmera, as mãos trêmulas. Por um instante, pensou em fechar o obturador. Mas a curiosidade, a sede de entender o que aquilo representava, falou mais alto. Ele fotografou. O clique ecoou no silêncio. E, ao descer a câmera, teve a estranha sensação de que a cor, por um breve segundo, o olhou de volta.
Por: João Pedro Silveira

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