Um filme de terror que se torna real para seus espectadores.
A Sombra do Projetor
O ar condicionado do Cinecultural Santa Lúcia lutava bravamente contra o calor úmido do fim de tarde em São Paulo. Na sala 4, um grupo seleto de cinéfilos, entre eles Clara, a contadora de 32 anos com um fetiche por filmes de suspense, e seu primo Lucas, um estudante de cinema com um olhar eternamente cético, se acomodava para a estreia de “O Véu Sussurrante”. O cartaz, com uma silhueta sombria e um título que prometia arrepios, não deixava mentir: era o novo terror psicológico do momento, falado em mandárim, legendado em português, sobre uma antiga maldição familiar que se manifestava através de sombras.
A primeira meia hora foi uma construção metódica de atmosfera. O crepitar da chuva na telona, o ranger de assoalhos em uma casa antiga, os sussurros quase inaudíveis que Clara jurou ter ouvido vindo da poltrona ao lado, mesmo com o som ambiente em volume moderado. Lucas revirou os olhos, murmurando sobre “manipulação barata de expectativas”. Mas algo, um calafrio sutil que nada tinha a ver com a temperatura controlada, começou a se instalar.
Era no silêncio entre as falas, nas pausas calculadas, que a verdadeira perturbação começava. Uma sombra particularmente longa e distorcida, projetada pela lanterna de um dos personagens no filme, parecia se esticar para fora da tela, tremeluzindo de forma não natural. Clara sentiu o peso no olhar de algumas pessoas ao redor. Um homem na fileira da frente se inclinou para trás, como se quisesse se afastar de algo invisível.
De repente, as luzes da sala piscaram. Não foi um piscar comum, mas um pulso rápido, quase um sobressalto. A tela, por um instante, ficou preta. Um grito fino, quase um chiado, escapou de alguém no fundo. Quando a imagem voltou, a cena era a mesma, mas a sombra que antes se projetava no chão da casa fictícia agora parecia dançar no corredor da sala de cinema.
O pânico se instalou aos poucos, silencioso e insidioso. O som do filme, antes uma ferramenta de imersão, agora se misturava com os ruídos que pareciam vir de dentro da sala. Um arrastar de pés abafado. Um suspiro longo e molhado que não pertencia à trilha sonora. Clara, com as mãos geladas agarradas aos braços da poltrona, sentiu o cheiro de terra molhada, um odor forte e nauseante que invadia seus pulmões e não vinha de lugar algum.
Lucas, o cético inveterado, estava pálido. Tentava justificar tudo com problemas técnicos, com a sugestão coletiva, mas seus olhos denunciavam o medo. Ele olhava fixamente para o canto da sala, onde a escuridão parecia mais densa, mais sólida. “É só o projetor”, ele sussurrou, mas sua voz tremia.
As figuras na tela, antes meras representações de atores, pareciam ganhar uma profundidade inquietante. Em um close-up de um rosto atormentado, Clara jurou ver um reflexo fugaz, não de um ambiente, mas do público. E não era um reflexo comum; era distorcido, como se a própria realidade estivesse sendo dilacerada.
O filme não avançava mais. A imagem congelou em um frame de puro terror: o rosto de uma mulher em agonia, e no fundo, no que deveria ser uma porta fechada, uma fresta de escuridão que se alargava. E daquela fresta, um murmúrio se propagou pela sala, um coro de vozes indecifráveis, mas carregadas de uma dor ancestral.
As pessoas começaram a se levantar, tropeçando umas nas outras, em busca da saída de emergência. Mas a porta, que antes parecia tão próxima, agora se arrastava para longe, suas sombras se contorcendo em formas demoníacas. O calor na sala aumentou, um calor que queimava por dentro. O cheiro de terra molhada se intensificou, misturado a um odor metálico, como sangue velho.
Clara, em meio ao caos, olhou para Lucas. Seus olhos, antes cheios de descrença, agora espelhavam o terror mais puro. Ele não estava mais olhando para a tela. Estava olhando para ela. E atrás dele, onde antes havia uma parede limpa, uma sombra escura e amorfa começava a se formar, um contorno humanoide que se esticava, esticava…
O projetor emitiu um chiado estridente. A imagem na tela se desfez em estática. Apenas o som permaneceu: um sussurro eterno, que parecia vir de todos os lugares e de lugar nenhum, e o som inconfundível de algo… rastejando. A porta do Cinecultural Santa Lúcia permaneceu fechada, e o silêncio lá fora, na rua movimentada de São Paulo, era ensurdecedor. Os sons que agora preenchiam a sala, para aqueles que ousavam escutar, não pertenciam mais a nenhum filme.
Por: João Pedro Silveira

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