Um farol abandonado onde antigos marinheiros assombrados guardam seus postos.
O Farol da Viúva
O cheiro de maresia, sal e ferrugem, um perfume pungente que parecia impregnado na própria pedra do farol, pairava pesado no ar. A construção, outrora orgulhosa e altiva sobre o rochedo da Ponta Negra, agora ostentava o desgaste dos anos e o abandono. Janelas quebradas, com molduras descascadas que lembravam órbitas vazias, fitavam o horizonte com uma melancolia inabalável. A tinta branca, outrora um farol de esperança para navegantes, esboroava-se em manchas que pareciam lágrimas salgadas.
Dona Lurdes, com seus oitenta anos e a pele marcada pelo sol e pelo vento como a casca de um velho coqueiro, era a guardiã mais recente. Guardiã por herança, por teimosia, por um amor que transcendia o tempo e o esquecimento. Seu pai, Seu Antônio, fora o faroleiro antes dela, e antes dele, o avô dela, Manoel. E assim a linhagem de vigias se estendia, uma corrente invisível de homens que dedicavam suas vidas à luz que espantava a escuridão do Atlântico.
Mas o tempo, implacável, trouxera a modernidade. Um rádio sinalizador, um GPS avançado, e o farol, com sua lâmpada a querosene, tornou-se obsoleto. O último faroleiro oficial se aposentou há mais de quinze anos, e a prefeitura, em sua infinita sabedoria, decidira deixá-lo à própria sorte. A prefeitura, aliás, não se lembrava mais do Farol da Viúva, como os antigos o chamavam, um nome que guardava a história de uma tragédia e de um amor fiel.
Dona Lurdes, no entanto, não se esquecia. Nem o farol parecia querer esquecer. Era como se os espíritos dos faroleiros que ali viveram e morreram ainda rondassem o lugar, mantendo uma vigília fantasmagórica. Ela os sentia, principalmente nas noites de temporal, quando o vento uivava como um lamento e as ondas batiam com fúria contra a base do farol.
Havia Seu Antônio, com seu bigode sempre úmido de suor e seu olhar preocupado enquanto polia a lente, rezando para que a luz não falhasse. Sua presença era uma aura de dever cumprido, de uma responsabilidade que pesava mais que o próprio corpo. Dona Lurdes às vezes o via, uma silhueta familiar no topo da escada em espiral, o som distante de seus passos surdos no metal.
E havia Manoel, o avô, aquele que construiu a casa ao lado do farol, um pescador experiente que conhecia cada recanto da costa. Ele era mais quieto, mais introspectivo, um murmúrio de sabedoria antiga. Sua presença era sentida na brisa que trazia o cheiro de rede de pesca e sal. Dona Lurdes, quando criança, jurava que o ouvia cantarolar canções de mar nas noites calmas.
Mas o mais assustador, o que de fato dava nome ao farol, era a história de Isabel, a esposa de Manoel, que, após ele se afogar em uma tempestade traiçoeira, passava horas em vigília na base do farol, com um lampião na mão, como se ainda esperasse o retorno dele. Alguns diziam que ela se jogou do alto do farol, outros que definhou de dor. O certo era que o espírito dela parecia ainda preso ali, um eco de esperança vã. Dona Lurdes às vezes jurava sentir um frio inexplicável na escadaria, um sopro gelado em sua nuca, e um aroma fugaz de flores silvestres, as mesmas que Isabel costumava colher.
Hoje, o farol não guiava mais. A lâmpada, há muito tempo emudecida, era apenas um vestígio de sua função passada. Mas para Dona Lurdes, e talvez para aqueles espíritos teimosos, ele ainda era um posto a ser guardado. Ela varria o chão empoeirado, limpava as teias de aranha que se formavam nos cantos, e conversava com eles, com os fantasmas de seus ancestrais, sobre o tempo, sobre os barcos que passavam longe, sobre a saudade do mar que, mesmo de perto, parecia cada vez mais distante.
Um dia, um jovem biólogo marinho, atraído pela biodiversidade da região, começou a frequentar a Ponta Negra. Ele se chamava Rafael, um homem de poucas palavras, mas com um olhar curioso e um respeito genuíno pela natureza e por suas histórias. Ele observava Dona Lurdes em suas rotinas, a forma como ela acariciava as pedras do farol, como falava baixinho com o vento.
Rafael, em suas incursões, descobriu um velho diário empoeirado, esquecido em um baú no sótão da casa de Dona Lurdes. Era o diário de Seu Antônio, repleto de anotações sobre o tempo, sobre os navios avistados, mas também sobre uma descoberta peculiar: ele notara que, em certas noites de lua cheia, a luz da lua, refletida de forma peculiar nas antigas lentes polidas, criava um feixe tênue, um brilho fantasmagórico que, por um instante, parecia dançar sobre as águas. Ele acreditava que, de alguma forma, aquele reflexo ainda exercia um poder sobre os corações dos navegantes mais antigos, aqueles que cresceram com a luz constante do farol.
O biólogo ficou fascinado. Começou a registrar os padrões de luz, a verificar a incidência da lua sobre as lentes. Em suas anotações, ele encontrou um trecho perturbador no diário de Seu Antônio: “Hoje vi Isabel. Ela estava na varanda, olhando o mar. Parecia mais leve, como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros. A luz do farol, mesmo fraca, a chamava.”
Rafael, agora, olhava para o farol com outros olhos. Ele sentia a quietude do lugar, mas também uma energia latente, como um coração que ainda batia em um corpo adormecido. Dona Lurdes, em sua sabedoria ancestral, continuava a varrer o pó, a manter o lugar em ordem, como se soubesse que, para aqueles que um dia ali dedicaram suas vidas, o posto nunca estaria verdadeiramente abandonado.
Uma noite, durante uma tempestade particularmente violenta, o rádio sinalizador oficial da costa falhou. O caos se instalou por alguns instantes, o pânico se alastrou nas rádios de comunicação. Foi então que, do alto do Farol da Viúva, um brilho tênue, quase etéreo, surgiu. Não era a luz potente de antigamente, mas um reflexo prateado da lua, um pulso fraco, mas persistente, que parecia dançar sobre a espuma revolta das ondas.
No pequeno barco de pesca que se perdia na escuridão, o velho pescador Zeca, que conhecia a costa como a palma de sua mão e crescera ouvindo as histórias do farol, viu aquele brilho. Seus olhos, marejados e confusos, se fixaram nele. Ele não entendia como, mas sentiu uma familiaridade, uma orientação reconfortante. Por instinto, ele ajustou o leme, seguindo aquele farol fantasma.
Dona Lurdes, em sua casa, sentiu uma corrente de ar frio percorrer o cômodo. Ela se virou para a janela. Do alto do farol, um brilho fraco pulsava, como um suspiro do mar. E em sua mente, ela não viu Seu Antônio ou Manoel. Viu apenas um lampejo rápido, um sorriso melancólico de Isabel, antes de sumir no breu da noite. Ela sorriu, um sorriso cansado, mas sereno. O posto ainda era guardado. Mas por quem, e para quem, ela já não tinha certeza. Apenas que o mar, e as histórias que ele guardava, jamais seriam totalmente esquecidos.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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