Um experimento de hipnose que força os sujeitos a confrontar seus piores medos.
**O Eco das Sombras**
O ar da sala de espera da Clínica Integração pesava. Um cheiro sutil de desinfetante misturado com o aroma adocicado e mofado de livros antigos pairava no ambiente. O sofá de couro desgastado, de um tom bege desbotado, parecia ter absorvido as angústias de incontáveis pessoas. Era sábado, fim de tarde em Porto Alegre, e a luz alaranjada do sol filtrava pelas persianas, desenhando listras no chão de madeira arranhada.
Lá dentro, o Dr. Matias, com seus cabelos grisalhos bem penteados e a voz suave como um murmúrio de rio, conduzia o experimento. Ao seu lado, de frente para a poltrona acolchoada onde os voluntários se sentavam, estava Helena. Ela era a “isca”, a primeira a ser submetida à hipnose profunda. Helena, 32 anos, designer gráfica, sofria de uma ansiedade paralisante que a impedia de progredir na carreira e de firmar relacionamentos duradouros. Seu medo mais sombrio era o de ser negligenciada, esquecida, de desaparecer sem deixar rastro.
Os outros voluntários observavam em silêncio, cada um com seu próprio tormento guardado. Havia o Seu Osvaldo, o padeiro de sessenta e poucos anos, cujas mãos calejadas tremiam levemente enquanto ele fechava os olhos, temendo o fracasso, o declínio da sua tradicional padaria no bairro. Ao lado dele, sentada na ponta do assento, estava Clara, uma jovem estudante de veterinária, apreensiva com a visão de seus bichos de estimação, os cães que ela amava com um fervor quase religioso, sofrendo em suas mãos. E o jovem Rafael, um músico aspirante, com o violão encostado na cadeira, cuja alma gritava diante do medo de nunca ser ouvido, de sua arte se perder no ruído do mundo.
Dr. Matias começou. Sua voz, agora mais firme, mas ainda envolvente, guiava Helena por caminhos internos. “Sinta a gravidade puxando você, Helena. A cada respiração, você afunda mais. Mais relaxada. Mais receptiva.” Helena fechou os olhos, a respiração irregular se acalmando aos poucos. O ar da sala parecia mais denso.
De repente, o ambiente mudou. Para Helena, as paredes da clínica deram lugar a um vasto espaço escuro e frio. O cheiro de desinfetante se transformou em um odor metálico e estagnado. Ela estava sozinha. Olhou para suas mãos, que agora pareciam transparentes. Tentou gritar, mas nenhum som saiu. O pânico a envolveu como um abraço gélido. Ela era uma sombra, uma memória desvanecida. E então, as vozes começaram. Murmúrios indistintos, distantes, mas penetrantes. “Ela não está mais aqui.” “Ninguém sentiu falta.” “Como se nunca tivesse existido.” As palavras eram como cacos de vidro em sua pele. Ela implorava, corria, mas a escuridão a engolia cada vez mais. Seu pior medo se materializando em um pesadelo vívido, palpável.
Ao lado, Seu Osvaldo suspirou profundamente, o corpo tenso. A voz do Dr. Matias agora ecoava em sua mente como um anúncio sombrio. “A farinha está empedrada, Osvaldo. O fermento não age mais. Os clientes foram embora. O cheiro doce de pão fresco foi substituído pelo mofo e pelo abandono.” O aroma familiar da sua padaria se desfez, dando lugar a um fedor de ranço e de poeira. Ele via as prateleiras vazias, as vitrines empoeiradas. Sentia o peso do fracasso, a vergonha de decepcionar gerações, de ver seu legado se transformar em ruínas. As mãos que amassaram pão a vida inteira pareciam inúteis agora.
Clara apertava os punhos, as unhas cravadas nas palmas. A imagem de um canil escuro e úmido inundou sua mente. Os latidos frenéticos, os olhares de abandono em olhos cansados. Ela via os cães que amava, magros, doentes, sem ninguém para cuidar. Via a si mesma, incapaz de fazer a diferença, seus esforços inúteis, as patinhas feridas, os corpos trêmulos em suas mãos. Sentia a culpa esmagadora, o peso da responsabilidade que ela não conseguia carregar.
Rafael sentiu a música se esvair. O violão em sua mente era um instrumento mudo, as cordas partidas. Ele se via em um palco vazio, a plateia deserta. O brilho dos holofotes apagado, o silêncio ensurdecedor. Suas melodias, que antes o transportavam, agora se perdiam no vazio, sem ouvidos para escutar, sem almas para tocar. Era a prova definitiva de sua insignificância, a confirmação de que sua arte era apenas ruído, um grito no deserto.
Dr. Matias continuou, sua voz uma âncora em meio à tempestade interna dos voluntários. “Olhe para o medo, Helena. Sinta-o, mas não o abrace. É uma sombra, não uma prisão.” E para Seu Osvaldo: “O cheiro do mofo é o passado. O futuro ainda pode ser assado.” Para Clara: “A compaixão em suas mãos é mais forte que a doença.” E para Rafael: “A música que pulsa em você é sua, mesmo no silêncio.”
Gradualmente, as visões começaram a se dissipar. O escuro se retirou, o mofo cedeu lugar a um leve aroma de pão, o canil se desfez, o palco vazio se tornou novamente a sala da clínica. Helena abriu os olhos, ofegante, as lágrimas marcando o rosto. Seu Osvaldo sentiu as mãos relaxarem, o peso nos ombros diminuir. Clara engoliu em seco, o coração ainda acelerado. Rafael apertou o braço do violão, como se buscasse a familiaridade.
Dr. Matias sorriu gentilmente. “Vocês enfrentaram suas sombras. O medo nos paralisa quando o ignoramos. Mas quando o olhamos de frente, ele perde parte de seu poder. O que vocês farão com o eco que ouviram?”
O silêncio que se seguiu não era de constrangimento, mas de profunda reflexão. Helena olhou para suas mãos, que agora pareciam sólidas e reais. Seu Osvaldo pensou no cheiro do pão quente da manhã seguinte. Clara imaginou a sensação de um focinho úmido em sua mão. Rafael dedilhou um acorde mentalmente, um som ainda sutil, mas presente.
A porta da clínica se abriu, e a luz do fim de tarde, agora mais suave, invadiu a sala. Cada um deles se levantou, seus passos soando diferentes no chão de madeira arranhada. O experimento havia terminado, mas o confronto, o eco das sombras, acabara de começar. Para onde eles levariam essa descoberta? Que cicatrizes o medo deixaria, e que curas ele poderia, paradoxalmente, inspirar? A resposta pairava no ar, tão incerta quanto o futuro.
Por: João Pedro Silveira

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