Um escritor atormentado pela ideia de um monstro que se alimenta do medo dos outros descobre que suas próprias histórias estão ganhando vida, mas a linha entre sua criação e a realidade se apaga, levando-o à loucura e a um destino terrível, sem escapatória.
A Sombra no Papel
O cheiro de café velho e mofo pairava no apartamento apertado de Miguel, um aroma familiar que se agarrava às paredes descascadas como uma segunda pele. A luz amarelada da luminária de cabeceira mal iluminava a pilha de manuscritos inacabados, cada um um testemunho silencioso de sua falha. Miguel, um homem de cabelos revoltos e olhos fundos que denunciavam noites em claro, tamborilava os dedos sobre a máquina de escrever, o som metálico ecoando no silêncio carregado.
Ele criara o Monstro do Medo, uma entidade etérea, um parasita que se nutria da apreensão alheia. No início, era apenas uma metáfora para a sua própria insegurança, a angústia de não ser bom o suficiente. Mas, aos poucos, as palavras ganharam uma vida própria, se contorceram em sua mente, pulsaram em suas veias.
Certo dia, a vizinha do andar de baixo, Dona Elvira, uma senhora gentil que sempre lhe oferecia pão de queijo quentinho, começou a aparecer pálida, com olheiras profundas e um tremor constante nas mãos. “É só o calor, Miguel”, dizia ela, a voz fina e trêmula. Mas Miguel sabia. Ele sentia a sua criação se espalhar, se alimentando do medo latente de Dona Elvira, que se manifestava em sussurros sobre assaltos e doenças incuráveis.
A realidade começou a se distorcer. As sombras no canto do quarto pareciam se agitar, assumindo formas indistintas. O ranger do assoalho, antes um ruído inocente, soava como passos furtivos. Ele via rostos nas manchas de umidade do teto, rostos que pareciam gritar em silêncio, repletos do pavor que ele mesmo destilava em suas páginas.
Seu editor, o pragmático Sr. Almeida, o chamou para uma reunião. “Miguel, sua escrita está ficando… sombria demais. Os leitores não se conectam com tanto desespero. Precisamos de esperança.” Miguel riu, uma risada seca e sem humor. Esperança? Como falar de esperança quando a esperança era um luxo que ele não podia mais se permitir?
Ele tentou lutar. Queimou manuscritos, arrancou páginas, amaldiçoou as palavras que saíam de suas mãos como veneno. Mas era inútil. O Monstro não estava mais no papel, estava nele. O medo que ele escrevia para seus personagens se tornou o seu próprio alimento. Ele se encolhia na cama, ouvindo os roncos da cidade, cada barulho uma ameaça, cada pensamento uma armadilha.
Uma noite, enquanto a lua cheia lançava uma luz fantasmagórica sobre a paisagem urbana, Miguel sentiu algo diferente. Não era mais o medo que o corroía, mas uma fome voraz. Uma fome insaciável por mais. Ele pegou a máquina de escrever, as mãos tremendo não de pavor, mas de uma antecipação sombria. As palavras vieram, fluidas, aterrorizantes, mais reais do que a própria vida. Ele escrevia sobre a própria loucura, sobre o eco de seus gritos, sobre a escuridão que o engolia.
No dia seguinte, a porta do apartamento de Miguel estava entreaberta. A polícia encontrou o lugar vazio, a máquina de escrever fria, uma única folha impressa sobre ela. Nela, apenas uma frase, escrita em letras irregulares e febris: “Ele agora escreve a fome de todos.” A cidade continuou seu curso, alheia ao abismo que se abriu no pequeno apartamento, mas algo mudou. Um sussurro sutil, um arrepio coletivo, uma sombra que pairava nos cantos dos olhos, alimentando-se de um medo que já não se sabia de onde vinha. E nas noites mais escuras, quando o silêncio pesava, alguns juravam ouvir o som distante de uma máquina de escrever, um eco solitário em meio à vastidão da noite, tecendo histórias que ninguém mais ousaria ler.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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