Um drone de vigilância que capta imagens perturbadoras de um local remoto.
O Olho de Vidro
O zumbido metálico do drone, quase inaudível para ouvidos humanos não treinados, era o único som a quebrar a vastidão do sertão. Para Miguel, lá embaixo, no calor rachado que emana da terra vermelha, o drone era apenas um pontinho inquieto contra o azul implacável, um observador alheio à sua rotina de suor e poeira. Miguel era um dos poucos que ainda teimavam em manter a terra do pai viva. O pequeno sítio, uma mancha de verde insistente no meio da aridez, era seu legado, seu exílio voluntário.
A empresa, GlobalView, que pilotava o drone de um escritório estéril em São Paulo, não sabia de Miguel. Ela buscava anomalias, desmatamentos ilegais, construções sem licença. E o drone, um modelo avançado, com lentes capazes de captar detalhes microscópicos, estava mapeando a região com uma precisão fria e implacável. O operador, um rapaz chamado Lucas, com olheiras permanentes e um vício em café forte, estava no meio de seu turno. Ele via uma miríade de pixels, formas geométricas que em terra firme compunham casas, estradas, rios.
Foi quando a anomalia surgiu. Não era um corte de árvores, nem um embate de terras. Era uma clareira estranha, no meio de uma mata densa e fechada, a quilômetros de qualquer estrada conhecida. A imagem, ampliada na tela de Lucas, revelou algo que fez seu café esfriar na garganta. No centro da clareira, uma estrutura de concreto cru, desprovida de qualquer acabamento, parecia brotar da terra como um fungo retorcido. Não havia janelas, nem portas visíveis. Era um bloco cego, silencioso.
Lucas aumentou o zoom, o suor começando a pingar em seu teclado. As imagens de alta resolução revelaram marcas na superfície irregular do concreto, arranhões profundos, como se algo tivesse lutado para sair. E havia algo mais. Pequenos pontos escuros, quase imperceptíveis, espalhados pelo solo ao redor da estrutura. Lucas ajustou o contraste, a nitidez. Eram manchas. Escuras, secas.
Em São Paulo, a tarde caía, tingindo o céu de tons alaranjados que se refletiam nas janelas dos arranha-céus. No sertão, o sol a pino castigava a terra com a mesma indiferença. Miguel, sentindo o cheiro acre do mato seco, suspirou. O poço estava cada vez mais raso, as plantas murchavam apesar de seus esforços. O sonho de seu pai de um oásis parecia cada vez mais distante, um fantasma de vida que a seca esmagava impiedosamente.
Lucas, na frieza do seu posto de trabalho, continuava a varrer a imagem. O drone planava sobre a clareira, a câmera inclinada para captar o máximo de detalhes. E então, ele viu. Perto da base da estrutura, parcialmente escondida pela vegetação rasteira, uma forma. Um contorno humano. Estática. Miguel, em sua caminhada diária para verificar as armadilhas de caça, havia se deparado com o mesmo silêncio estranho, o mesmo ar parado que antecede uma tempestade. Ele se afastara da trilha batida, atraído por um instinto primitivo, um aviso que a terra lhe sussurrava.
O drone registrou um aglomerado de pedras, dispostas de forma não natural. Lucas, o coração batendo descompassado, focou nas pedras. Uma delas, maior que as outras, parecia ter sido deslocada recentemente. E entre as pedras, algo que não parecia pedra. Um pedaço de pano. Uma cor desbotada que se misturava à terra.
Miguel, com as mãos trêmulas, afastou a pedra. E o cheiro o atingiu, um fedor de morte antiga misturado com o acre da terra. Abaixo, na terra revolvida, algo brilhava fracamente sob a luz do sol. Um pedaço de metal polido. A lente de um óculos.
Lucas enviou as imagens para sua supervisora, uma mulher pragmática chamada Helena. As manchas escuras no solo, a estrutura desprovida de propósito aparente, a forma estática no chão, o pedaço de metal. A GlobalView não buscava crimes, mas sinais de atividade humana em áreas remotas era seu dever catalogar. Helena revisou as imagens, a testa franzida. Era perturbador, sem dúvida. Mas o que exatamente?
O drone, com sua precisão mecânica, continuou seu voo. Capturou imagens de Miguel ajoelhado na terra, o corpo arqueado, as mãos cavando. Capturou a revelação lenta e dolorosa do que estava escondido. O drone, um olho de vidro sem sentimentos, registrou o horror silencioso de um homem descobrindo um segredo antigo. E em São Paulo, Helena deu um longo suspiro, os dedos pairando sobre o teclado. O que fazer com uma imagem que não se encaixa em nenhuma categoria de relatório? Um dilema humano, invisível aos olhos do drone, pairava no ar. A terra continuava a guardar seus segredos, e o olho de vidro, incansável, voava sobre ela, um mero espectador de horrores que jamais entenderia. E Miguel, com os olhos fixos no brilho metálico, sabia que sua terra, antes apenas árida, agora abrigava um luto profundo e silencioso.
Por: Marina Rocha Antunes

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