Um campo de batalha com ecos de conflitos passados e aparições de soldados.
TERRA MOLHADA, OSSOS SECOS
O cheiro da chuva recém-caída sobre a terra seca sempre trazia Lúcia de volta. Não para a fazenda dos avós, onde a memória coletiva falava de seca e fartura em ciclos imutáveis, mas para outro lugar, um lugar que não estava em mapa nenhum que ela conhecesse, mas que sentia nas profundezas dos ossos. Aquele campo, ali, na beira da estrada de terra vermelha que serpenteava entre o casario modesto de Vila da Esperança, parecia vibrar com uma história que se recusava a morrer.
Hoje era dia de feira. O sol, ainda tímido, começava a aquecer a manhã fria de agosto, e o burburinho dos feirantes se misturava ao aroma de café fresco e pão de queijo assando nas vendas improvisadas. Lúcia, com seu chapéu de palha amassado e a cesta de vime às costas, caminhava em direção à praça, mas seus pés pareciam ter vida própria, desviando para o terreno baldio à margem da estrada.
Era um campo amplo, coberto por uma vegetação rasteira e salpicado por rochas escuras. Nos dias mais secos, o pó levantava com qualquer brisa, e nos chuvosos, como hoje, a terra se transformava em um barro pegajoso, com poças que espelhavam o céu cinzento. Era ali que, segundo as histórias sussurradas pelos mais velhos, havia acontecido algo. Algo que deixara marcas invisíveis, mas profundas.
Quando ela estava perto da cerca de arame farpado que delimitava o lugar, o ar pareceu mudar. Um frio estranho, que nada tinha a ver com a brisa matinal, a envolveu. Lúcia parou, a respiração presa na garganta. O som dos vendedores se distanciou, substituído por um murmúrio baixo, como vozes distantes em um campo aberto.
E então ela os viu. Não claramente, como se vultos dançassem na borda da visão. Um homem alto, com um uniforme que parecia desbotado pelo tempo e pela terra, agachado, com um rifle em mãos. Outro, mais jovem, com o rosto marcado pela poeira e pelo desespero, cambaleando para trás, como se perseguido por um inimigo invisível. Não eram espectros assustadores, mas presenças silenciosas, perdidas em uma repetição eterna de um instante congelado.
Lúcia sentiu um nó na garganta. Ela já ouvira falar das revoltas, das brigas por terra, das tropas que passaram por ali há muitas décadas, deixando para trás mais dor do que vitória. Mas nunca imaginara ver os ecos tão vivos. Aquele campo não era apenas um pedaço de terra, era um receptáculo de sofrimento, um altar silencioso para vidas interrompidas.
Um soldado, com o olhar fixo em um ponto invisível no horizonte, parecia suspirar, um som quase imperceptível. Lúcia sentiu uma pontada de compaixão, um desejo avassalador de se aproximar, de oferecer um copo d’água, de dizer que tudo tinha acabado. Mas sabia que não podia. Eles estavam presos em sua própria realidade, em seu próprio tempo.
Ela fechou os olhos por um instante, sentindo o cheiro da terra molhada invadir seus pulmões. Era um cheiro de vida, mas naquele campo, misturado a ele, havia um aroma sutil de poeira antiga e de ferro. Um cheiro de batalhas que, talvez, nunca tivessem realmente terminado.
Quando abriu os olhos novamente, os vultos haviam sumido. Apenas a vegetação e as rochas estavam lá, imperturbáveis. O burburinho da feira voltou, forte e vibrante. Os feirantes gritavam seus produtos, as crianças corriam, a vida seguia seu curso.
Lúcia se virou, a cesta de vime pesando em seu braço. No caminho de volta para a praça, ela olhou para trás uma última vez. O campo parecia comum, apenas mais um pedaço de terra à beira da estrada. Mas para ela, para sempre, aquele lugar guardaria os murmúrios silenciosos dos que lutaram e morreram ali, um lembrete pungente de que, mesmo sob o sol forte e na terra fértil do presente, os ecos do passado podem, e insistem em, ressoar. Ela comprou seus temperos, seu peixe, suas frutas, mas uma parte de sua mente, e de seu coração, permaneceu naquele campo, ouvindo o que ninguém mais parecia escutar. E se perguntando, enquanto o sol subia, se o que ela via eram apenas suas próprias memórias projetadas, ou se, de fato, aqueles soldados ainda procuravam algo que talvez nunca tivessem encontrado.
Por: João Pedro Silveira

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