Um bibliotecário que descobre um livro que conjura figuras de suas páginas.
O Papiro das Sombras e do Sussurro
O cheiro de papel antigo e cera de assoalho era o perfume da alma de Elias. A Biblioteca Municipal de Águas Claras, com seus corredores labirínticos e luz que filtrava em feixes empoeirados pelas janelas altas, era seu refúgio, seu reino. Ele, Elias, o zelador silencioso de histórias, o guardião de universos contidos em capas gastas. Elias não era um homem de grandes eventos, mas de pequenos rituais: o café preto fumegante no canto da mesa de carvalho, o polimento delicado da lombada de um volume recém-chegado, o cochilo fugaz sob o olhar severo de um busto de Machado de Assis.
Um dia, na seção esquecida dos fundos, onde o mofo tecia sua teia prateada sobre os invendáveis, Elias encontrou-o. Um livro sem título aparente na lombada, com uma capa de couro escuro e áspero, marcada por runas que ele não reconhecia. Não era um clássico, nem um romance popular. Era um tomo peculiar, pesado, que parecia exalar um frio sutil mesmo sob o calor abafado de dezembro em Minas. A curiosidade, essa velha amiga traiçoeira, picou-o. Levou-o para sua pequena sala nos fundos, onde a luz era escassa e os gatos da vizinhança faziam ninhos entre pilhas de jornais velhos.
Ao abrir o livro, as páginas ganharam vida. Não de forma estrondosa, mas sutil. No início, Elias pensou ser a luz, o cansaço. Mas as imagens que emergiam das palavras não eram meras ilustrações. Eram tridimensionais, quase palpáveis. Um pássaro, de um azul intenso, esvoaçou de uma poesia sobre a liberdade, pousando brevemente na prateleira acima de sua cabeça antes de se dissolver em pó de estrelas. Um menino com um balão vermelho surgiu de uma fábula, seus olhos curiosos fitando Elias com uma alegria contagiante, antes de ser sugado de volta para a página.
As primeiras semanas foram de deslumbramento e medo. Elias mantinha o livro em segredo, seus olhos sempre atentos, o coração disparado a cada ruído inesperado. As figuras eram efêmeras, dançando na periferia de sua visão, materializando-se apenas quando ele estava sozinho. Elias, um homem solitário por escolha e por natureza, sentia-se, pela primeira vez em anos, acompanhado. Ele conjurava cenas de contos de fadas para afastar a solidão, fragmentos de romances para reviver paixões que nunca viveu. Criava paisagens exóticas para colorir a monotonia de sua rotina, rostos de heróis e heroínas para preencher o vazio.
O dilema começou a pesar. Elias, um homem de ordem, de regras, de silêncio, de repente possuía um poder incontrolável. E se ele perdesse o controle? E se as figuras se tornassem malévolas? E se elas o sugassem para dentro de suas páginas, condenando-o a viver em um eterno conto? Ele começou a notar a fragilidade de sua própria existência em contraste com a vivacidade ilusória que emanava do livro. As figuras não sentiam a dor, a fome, o arrependimento. Eram ecos, sombras, projeções de emoções.
Em uma tarde particularmente chuvosa, Elias decidiu testar os limites. Ele abriu uma página que descrevia um baile em um palácio, e uma multidão de rostos sorridentes e vestidos cintilantes surgiu. Ele estendeu a mão, esperando sentir o toque da seda, o calor de um corpo. Mas sua mão atravessou o ar, a multidão indiferente a sua presença. Um aperto gelado subiu por sua espinha. Ele era um observador, não um participante. As figuras o lembravam de sua própria existência, de sua própria carne e osso, de sua própria solidão.
Decidiu então que o livro era perigoso demais. Não para o mundo exterior, mas para ele. A ilusão era tentadora, mas a verdade, por mais dolorosa que fosse, era a sua. Em uma noite sem lua, com o coração pesado, Elias levou o livro de volta para o fundo da biblioteca. Colocou-o em uma caixa de madeira velha, fechou-a com um cadeado enferrujado e a escondeu atrás de estantes instáveis, onde a poeira reinaria soberana.
Ao sair para a rua molhada pela garoa, Elias sentiu um vazio estranho. O silêncio da biblioteca, antes reconfortante, agora soava oco. Ele olhou para trás, para a porta escura, para as janelas que guardavam tantos segredos. O papiro das sombras e do sussurro ainda estava lá, adormecido. Mas Elias sabia que as figuras, mesmo desfeitas, deixaram uma marca. Em sua memória, em sua alma, em cada canto silencioso da biblioteca onde antes habitava apenas o cheiro de papel e o eco de seus próprios passos. E às vezes, em um vislumbre periférico, Elias jurava ainda ver um lampejo de azul intenso, ou ouvir o sussurro de um riso infantil, misturando-se ao som da chuva que caía sobre Águas Claras.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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