Um arqueólogo desenterra um artefato que abre um portal para um plano habitado por espíritos malévolos.
O Canto das Âncoras
O sol da tarde se espreguiçava preguiçoso sobre as telhas desgastadas de uma casa modesta em São Gonçalo, pintando as paredes descascadas com um tom alaranjado melancólico. Lá dentro, o cheiro de mofo e café frio pairava no ar, impregnado nas roupas de Elias e nos livros empilhados até o teto. Elias, arqueólogo por vocação e por carência, passava os dias a desvendar os segredos do passado, buscando no pó e nas ruínas um sentido que a vida moderna teimava em negar-lhe.
Sua última expedição o levara às profundezas esquecidas de um antigo engenho de açúcar em Pernambuco. O calor sufocante, a poeira fina que grudava na pele suada e os mosquitos insistentes eram companheiros constantes. Foi em meio a restos de cana e tijolos quebrados que ele o encontrou. Não era ouro, nem joia, nem fragmento de cerâmica comum. Era uma caixa pequena, de madeira escura e lisa, trabalhada com um intrincado padrão de espirais e símbolos que não pertenciam a nenhuma cultura conhecida. Uma única e pequena ranhura no centro, como um olho fechado, parecia convidá-lo.
De volta ao seu refúgio em São Gonçalo, a caixa repousava sobre sua mesa de trabalho, ofuscando as cartas de cobrança e os trabalhos acadêmicos sem publicação. A curiosidade era um vício antigo, alimentado por anos de escavações frustradas e desilusões acadêmicas. Ele a abriu com um pedaço de ferro enferrujado. Um leve clique e a tampa cedeu.
Não houve um clarão, nem um som estrondoso. Apenas uma névoa fria e viscosa emergiu da caixa, com cheiro de terra molhada e algo mais… algo metálico, como sangue seco. Elias tossiu, a garganta arranhando. A névoa se dissipou, deixando um silêncio denso, carregado. Ele sentiu uma presença. Não uma pessoa, mas algo mais antigo, mais fundo.
Naquela noite, os sonhos de Elias foram povoados por sussurros guturais e visões de formas retorcidas dançando em um crepúsculo perpétuo. Sentia os olhares, frios e famintos, penetrando seus pensamentos. Acordava suando, o coração martelando contra as costelas, a realidade parecendo um véu tênue sobre um abismo.
A energia em sua casa mudou. Objetos se moviam sozinhos, sombras se alongavam e dançavam no canto do olho. O gato de sua vizinha, a Dona Maria, costumava miar e ronronar em sua varanda, mas agora se enfiava por debaixo dos portões, os olhos arregalados de pavor. Elias sentia um aperto no peito, um medo primordial que se misturava a uma estranha fascinação. Ele havia aberto uma porta, e algo do outro lado estava a tentar atravessá-la.
Em uma tarde chuvosa, a água escorria pelas janelas, distorcendo a paisagem urbana lá fora. Elias estava em seu quarto, a caixa aberta sobre a cama. Sentiu um frio cortante e, de repente, a figura de uma mulher se materializou ao seu lado. Não era corpórea, mas translúcida, com um rosto que parecia ter sido moldado pela dor e pelo desespero. Seus olhos, vazios, fixaram-se nos de Elias. Ela não falava, mas um lamento silencioso emanava dela, um eco de sofrimento ancestral.
Elias sentiu o peso da existência dela, a fome que a consumia. E então, percebeu que não eram apenas entidades malévolas que ele havia libertado. Eram almas perdidas, presas em um limbo sombrio, atraídas pela luz tênue da vida. A caixa não era uma arma, mas uma âncora, e ele a havia soltado.
O dilema o dilacerava. Podia tentar selar a caixa novamente, mas ele sabia que a porta já estava aberta. A energia que emanava dela era sutil, mas insidiosa, como uma doença que se alastra sem ser percebida. Ele era um arqueólogo, um homem de ciência, mas agora estava diante do inexplicável, do inominável.
As noites se tornaram mais longas e perturbadoras. Elias via as sombras se adensarem, os sussurros mais altos. A mulher translúcida aparecia com mais frequência, agora acompanhada de outras figuras indistintas, um coro silencioso de desespero. O cheiro metálico se intensificou, misturando-se ao aroma agridoce da chuva. Ele se sentia cada vez mais fraco, como se sua própria essência estivesse sendo sugada para aquele outro plano.
Um dia, enquanto vasculhava seus livros sobre mitologias antigas, encontrou um fragmento de texto obscuro que falava de “portais de eco”, de “âncoras dimensionais” e de “o Canto das Âncoras”, um lugar onde almas esquecidas aguardavam. Elias percebeu que a caixa era um desses artefatos, uma chave para um lugar que a humanidade havia preferido esquecer.
Elias fechou os olhos, sentindo o frio da presença ao seu redor. A pergunta ecoava em sua mente: seria ele a chave para o aprisionamento dessas almas, ou o seu portador para um destino ainda mais sombrio? Olhou para a caixa sobre a mesa, o padrão de espirais parecendo agora se mover, respirar. Ele sabia que a busca por sentido havia apenas começado, e que o preço a pagar era muito maior do que ele jamais imaginara. A chuva continuava a cair, lavando as ruas de São Gonçalo, mas Elias sentia que nenhuma chuva seria capaz de limpar a marca que ele havia deixado na tapeçaria da realidade.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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