Os Sussurros da Serra

Os Sussurros da Serra

A poeira vermelha da Chapada Diamantina se agarrava às botas de couro gasto de Helena, marcando a trilha até a Pousada da Lua Serena. Isolada entre cânions que beijavam o céu e o verde impenetrável da caatinga, o lugar parecia um refúgio esquecido pelo tempo. Helena, uma antropóloga em busca de silêncio e inspiração para seu novo livro, escolheu a pousada precisamente por sua reclusão. Ao seu lado, Rodrigo, seu companheiro, um fotógrafo inquieto, já explorava os arredores com seu olhar curioso, atraído pelas formas escultóricas que a natureza esculpira nas rochas.

Além deles, a pousada abrigava um casal de turistas alemães, sempre com seus walkmans e olhares distantes, e um senhor idoso e silencioso, que passava os dias sentado na varanda, encarando o horizonte com uma serenidade quase meditativa. Dona Aurora, a proprietária, uma senhora de cabelos brancos como a névoa da manhã e um sorriso gentil, era a única alma viva que parecia realmente pertencer àquele lugar, falando com a natureza como se fosse uma velha amiga.

Os primeiros dias transcorreram na paz esperada. Helena mergulhava em suas anotações, Rodrigo capturava a luz dourada da tarde nos morros, e os alemães colecionavam paisagens em suas câmeras. Mas, ao cair da noite, quando o manto estrelado da Chapada se desdobrava, algo sutil começou a mudar.

Foi Helena a primeira a notar. Enquanto revisava seus textos à luz trêmula de uma lamparina, um som baixo, quase inaudível, flutuou do exterior. Parecia um murmúrio distante, uma cadência estranha que, a princípio, ela atribuiu ao vento assobiando pelas fendas das rochas. Mas o som persistia, ganhando uma melodia gutural, inconfundível.

“Rodrigo”, ela chamou, a voz um pouco tensa. “Você ouve isso?”

Rodrigo, que estava editando suas fotos em seu laptop, ergueu a cabeça. “O quê? O vento?”

“Não, é diferente. Parece… uma língua.”

Naquela noite, os sussurros se tornaram mais claros. Vindos das rochas imponentes que cercavam a pousada, as vozes murmuravam em um idioma que Helena, com seus anos de estudo, reconheceu de imediato, mas que nunca ouvira em seu estado mais puro. Era Tupi-Guarani.

O casal alemão, inicialmente indiferente, também começou a demonstrar inquietação. Seus olhares perdidos agora se fixavam nas paredes de pedra, de onde emanava o som melódico e, ao mesmo tempo, perturbador. O senhor silencioso, pela primeira vez desde que chegaram, desviou o olhar do horizonte e fixou-o nas rochas, um leve tremor percorrendo seus lábios.

Na manhã seguinte, a atmosfera na pousada estava carregada de uma apreensão palpável. Helena, decidida, procurou Dona Aurora.

“Dona Aurora, os sussurros… são Tupi-Guarani, não são? O que significa?”

Dona Aurora suspirou, o olhar distante fixo em algum ponto além das montanhas. “Ah, minha filha. A Chapada tem suas próprias vozes. Voes antigas que dormem por séculos. E, às vezes, acordam.”

“Mas por que agora? E por que para nós?”

“Vocês chegaram”, disse Dona Aurora com uma simplicidade que gelou Helena. “A chegada de almas que buscam algo, que carregam histórias… isso mexe com a terra. E com os espíritos que nela residem.”

Rodrigo, mais pragmático, tentava encontrar uma explicação racional. “Talvez sejam ecos. Alguma formação geológica estranha que amplifica o vento de uma maneira peculiar.”

“Ecos que falam Tupi-Guarani?”, Helena retrucou, sem conseguir reprimir um arrepio.

Naquela noite, os sussurros se intensificaram. Não eram mais murmúrios distantes, mas conversas fluidas, como se uma tribo ancestral estivesse reunida bem ali, nas entranhas das rochas. Helena, com o coração disparado, decidiu se aproximar das pedras. Rodrigo, relutante, a seguiu.

Ao encostar a palma da mão na rocha fria, Helena sentiu uma vibração profunda, uma energia que parecia pulsar em sintonia com os sons. As palavras, antes ininteligíveis, começaram a se decifrar em sua mente, não através da audição, mas de uma compreensão visceral. Eram histórias de povos que ali viveram, de rituais, de conexão profunda com a natureza. Mas também havia um aviso.

“O equilíbrio foi quebrado”, a voz na mente de Helena traduzia. “O fogo da memória se reacendeu com a presença de quem não o mantém.”

O senhor silencioso apareceu na escuridão, seus olhos brilhando com uma intensidade incomum. Ele se aproximou de Helena e Rodrigo, e pela primeira vez, falou.

“Eu os vi. Vocês vieram. Mas não reconhecem o que carregam.”

“O que carregamos?”, Rodrigo perguntou, confuso.

“A memória do futuro”, o senhor respondeu, sua voz frágil, mas firme. “A força que faz o mundo girar. A entidade que desperta… é a própria terra, reclamando seu poder.”

A entidade. A percepção atingiu Helena com força. Não era um espírito solitário, mas algo intrinsecamente ligado àquele lugar, ao seu passado ancestral. A chegada deles, cada um com suas próprias energias e propósitos, tinha sido o gatilho para um despertar.

Nos dias seguintes, os sussurros continuaram, mas agora, mais do que vozes, eram sentimentos que emanavam das rochas. Alegria, tristeza, raiva, saudade. Helena começou a entender que a entidade não era apenas um espectador, mas uma manifestação da própria energia da Chapada, um eco vivo dos povos que um dia a habitaram.

Os turistas alemães, em choque, decidiram partir abruptamente. O senhor silencioso, revelando-se um descendente distante de um antigo pajé, começou a realizar pequenos rituais, buscando apaziguar a entidade com cantos e oferendas simples.

Helena, absorvendo a experiência, percebeu que sua busca por inspiração havia se transformado em algo muito maior. Aquilo que ela esperava encontrar em livros e pesquisas, estava ali, pulsando nas rochas, sussurrando em uma língua esquecida. A entidade ancestral, despertada pela sua presença, não era uma ameaça, mas um chamado. Um chamado para se reconectar com as raízes, com a força primordial da terra.

Ao final de sua estadia, enquanto o carro se afastava pela estrada de terra, Helena olhou para trás, para a Pousada da Lua Serena, e para as rochas imponentes que guardavam seus segredos. Os sussurros em Tupi-Guarani haviam diminuído, mas a energia que eles representavam, a sabedoria ancestral, permaneceria com ela para sempre, um eco silencioso que a lembraria que, em alguns lugares, o passado nunca realmente morre, apenas adormece, esperando o momento certo para despertar. E que, às vezes, o despertar é chamado pela simples presença de almas curiosas.


Por: Isabela Fernandes Couto

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