O Toque Que Desperta
O cheiro de terebintina e poeira antiga era o perfume da existência de Clara. Seu pequeno ateliê, aninhado nos fundos de uma casa colonial em ruínas no centro histórico de Olinda, parecia ter sido engolido pelo tempo, tal qual as telas que ela resgatava. A luz coada pelas venezianas empoeiradas desenhava feixes mágicos sobre a madeira envelhecida e as pinceladas fantasmagóricas.
Clara não restaurava quadros; ela ressuscitava memórias. Havia ali um retrato embaçado de uma senhora de olhos profundos, o azul desbotado do seu vestido parecendo um sussurro sobre a tela rachada. Por semanas, Clara se debruçou sobre ela, com a paciência de quem coaxa segredos de um leito de hospital. Cada pincelada era um diálogo silencioso, uma tentativa de decifrar a angústia velada no canto da boca, a saudade que se acumulava nas pálpebras caídas. A senhora voltava à vida, não em cores vibrantes, mas com a melancolia terna de uma lembrança distante.
O problema, Clara sabia, era que ninguém mais via essa vida que ela insuflava. Os donos, geralmente herdeiros desinteressados ou colecionadores que compravam por impulso em feiras de antiguidades, vinham buscar suas obras com a mesma indiferença com que as haviam deixado. Um aceno de cabeça, um comentário vago sobre a semelhança com o avô ou a tia, e o quadro voltava para o anonimato de uma sala de estar em algum bairro distante, esquecido novamente. O reconhecimento, para Clara, era um luxo que parecia destinado a outros.
Havia a tela do pescador. O homem, robusto, com o olhar fixo no horizonte, a pele curtida pelo sol e pelo sal. A composição era vigorosa, mas o verniz amarelado obscurecia a força da cena. Clara passou dias limpando cuidadosamente a sujeira acumulada, sentindo a textura grossa da tinta sob seus dedos delicados. Era um trabalho árduo, que exigia precisão cirúrgica. Ela imaginava o cheiro do mar, a brisa salgada no rosto do homem, o esforço nos seus braços. Quando terminou, o céu ganhou um azul mais vivo, as ondas pareciam quase audíveis, e o pescador, mais real do que nunca, ainda fitava o mar com uma esperança resiliente. O cliente, um jovem que herdara a tela de um tio-avô, disse apenas: “Ah, ficou melhor. Era isso que eu esperava.” E pagou o preço combinado, sem um pingo de admiração pelo milagre que acabara de acontecer.
O dilema de Clara era constante. O amor pela arte, pela história contida em cada obra, a mantinha ali, em meio à precariedade, à falta de recursos, à invisibilidade. Ela se sentia uma guardiã de vozes caladas, uma tradutora de silêncios. Às vezes, em noites chuvosas, quando o gotejar constante no telhado ecoava a solidão de seu ateliê, ela se perguntava se valia a pena. Se todo esse esforço, essa dedicação, essa alma derramada em cada fibra de tela, não eram um grito no vazio.
Um dia, chegou um quadro diferente. Pequeno, quase insignificante, uma paisagem urbana em tons de cinza, uma rua de paralelepípedos e prédios sem vida. O cliente era um senhor idoso, com mãos trêmulas e um olhar perdido. Ele disse que a pintura pertencia à sua falecida esposa, que a amava muito, mas que ela se deteriorou com o tempo, e ele queria vê-la como ela era. Clara aceitou o trabalho com a mesma seriedade de sempre.
Ao limpar a pintura, ela descobriu detalhes sutis: uma flor solitária brotando de uma rachadura na calçada, a luz difusa de uma janela sugerindo um lar acolhedor. A obra, antes sombria, ganhou uma quietude melancólica, um convite à introspecção. Quando o senhor veio buscar a tela, seus olhos marejaram. Ele pegou o quadro com um cuidado reverente, acariciando a superfície.
“Você a trouxe de volta”, ele sussurrou, a voz embargada. “Você a trouxe de volta para mim.”
Ele não disse nada sobre a técnica, sobre a perfeição do restauro. Ele viu a memória que Clara ressuscitou. Deixou uma gorjeta generosa, que Clara aceitou com um misto de surpresa e gratidão. Ao sair, ele parou na porta do ateliê, olhou para Clara e disse: “Nem todos os milagres precisam ser anunciados em voz alta.”
Clara ficou ali, parada, o cheiro de terebintina preenchendo seus pulmões. O sol da tarde entrava pelas venezianas, aquecendo seu rosto. Ela olhou para a cadeira vazia onde o senhor estivera sentado, para a tela que ele levou consigo. Talvez, ela pensou, o reconhecimento não fosse a soma de aplausos, mas a reverberação silenciosa no coração de quem, por um instante, reencontrou algo que julgava perdido para sempre. E, naquele instante, a vida pulsava, não nas paredes do seu ateliê, mas nas memórias que ela, a restauradora, teimava em manter vivas.
Por: Catarina de Assis Mendonça

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