O toque frio de mãos invisíveis.
O Toque Frio de Mãos Invisíveis
O cheiro de café coado pairava no ar da cozinha modesta de Dona Lúcia, misturando-se ao aroma persistente do sabão em pó que ela usara para lavar as roupas do marido e dos filhos. Era uma manhã de terça-feira, o sol ainda tímido esgueirando-se pelas venezianas amarelas, pintando listras de luz sobre o piso gasto. O burburinho distante do trânsito da Avenida Paulista chegava como um murmúrio abafado, um lembrete constante da vida lá fora, vibrante e indiferente.
João, o caçula, com seus sete anos e olhos curiosos como duas jabuticabas polidas, já estava sentado à mesa, a ponta da língua de fora enquanto lutava com um pedaço de pão amassado. Ao lado dele, Maria Eduarda, a filha do meio, onze anos, devorava com os olhos um livro didático, a testa franzida em concentração. Na cadeira da cabeceira, Roberto, o marido, barbeava-se em silêncio em frente a um pequeno espelho pendurado na parede, o barbear rotineiro um ritual matinal de quem sabia que o dia seria longo.
Dona Lúcia serviu o café, o vapor subindo em espirais preguiçosas. Ao passar por Roberto, sentiu um arrepio súbito, um frio que não vinha da brisa matinal que teimava em entrar pelas frestas da janela. Era um toque, leve, mas gélido, na nuca. Ela parou, a caneca de esmalte batendo levemente na borda do fogão. Olhou para trás, mas não havia ninguém. Roberto estava absorto em seu reflexo, os filhos concentrados em suas rotinas.
“Que estranho”, murmurou para si mesma, esfregando a nuca.
Nos dias seguintes, os toques se tornaram mais frequentes. Um roçar imperceptível no braço enquanto ela atravessava o corredor. Um aperto suave no ombro, no meio da noite, quando Roberto ressonava ao seu lado. Um sopro gelado na orelha quando ela estava dobrando as roupas no varal, o sol forte do entardecer aquecendo sua pele.
Ela não conseguia explicar. Eram como dedos invisíveis, frios, que pareciam sondá-la, testá-la. Não eram ameaçadores, mas profundamente inquietantes. Os sons da casa, antes familiares e reconfortantes, agora ganhavam contornos sinistros. O ranger do assoalho, o tic-tac do relógio na sala, o assobio distante do vento nos fios elétricos – tudo parecia amplificado, prenhe de uma presença que ela não conseguia decifrar.
Roberto, acostumado à rotina imutável de sua vida, a via cada vez mais distraída, os olhos vagando para pontos vazios, as mãos parando no meio de uma tarefa. Ele atribuía à exaustão, ao cansaço de cuidar da casa e dos filhos e de trabalhar como porteiro no prédio comercial em frente, um trabalho que exigia mais paciência do que força.
“Você anda meio aérea, Lúcia”, ele disse um dia, a voz grave e sonolenta. “Cansada, né? Descansa um pouco.”
Mas não era cansaço. Era um alerta. Uma sondagem. Ela começou a notar pequenas mudanças. Objetos que mudavam de lugar, tão sutilmente que ela duvidava da própria memória. A xícara de chá que ela deixava sempre à direita do fogão, aparecia à esquerda. O livro de Maria Eduarda, que ela tinha certeza ter deixado na mesa de cabeceira, estava no chão.
Um dia, enquanto separava o lixo para a coleta seletiva, sentiu um toque mais firme, um puxão na manga do seu avental. Ela virou-se bruscamente, o coração martelando no peito. Nada. A rua deserta, apenas o sol forte batendo no asfalto rachado. Mas no chão, a poucos centímetros de onde ela estava, uma rosa amarela, murcha e seca, que ela nunca vira antes.
A rosa amarela. A cor que ela mais gostava. Um presságio, um aviso, ou um recado?
Ela pegou a rosa, o toque seco das pétalas um contraste com o frio que sentia na pele. Olhou para o céu azul, vasto e indiferente. Será que a vida, como a conhecia, era apenas uma fina camada sobre algo muito mais antigo e inexplicável? Os dilemas humanos, as preocupações cotidianas, tudo se tornava pequeno diante daquele toque frio, daquela certeza imponderável de que não estava sozinha, e que as mãos que a tocavam não pertenciam a este mundo.
Naquela noite, deitada ao lado de Roberto, sentiu novamente o arrepio. Desta vez, o toque veio na mão dele, pousada sobre o lençol. Ela não se afastou. Abriu os olhos devagar. As paredes do quarto pareciam mais escuras, as sombras mais profundas. E no escuro, algo pairava, um sopro gelado que a envolvia, um convite silencioso para um lugar onde a vida e a morte, o conhecido e o desconhecido, se entrelaçavam de formas que ela, Dona Lúcia, do bairro da Mooca, ainda não ousava nomear. A pergunta ficava no ar, pesada e insistente: o que aquele toque frio queria dela? E o que ela estava disposta a descobrir?
Por: Ricardo Soares Guedes

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