O Tempo emoldurado
O cheiro de café fresco, o estalar suave do papel recém-impressa, o tilintar distante de um carro na rua de paralelepípedos de Copacabana. Era o final de tarde de um sábado qualquer, daqueles que se estendem preguiçosos na varanda de Dona Elza, com o sol dourando as folhas das tamareiras e tingindo o céu de tons alaranjados e violetas. Ela, Elza, sentada na sua poltrona de vime, os dedos finos e manchados de idade acariciando a moldura prateada de uma foto antiga.
Na foto, ela, mais jovem, cabelos cacheados e um sorriso largo que teimava em se apagar com o tempo. Ao seu lado, o saudoso Joaquim, com o braço protetor em volta de sua cintura, o olhar fixo na lente, confiante. E no meio deles, a pequena Sofia, um redemoinho de cabelo escuro, os olhos vivos de curiosidade, um pirulito na mão. A imagem emoldurava um fragmento de felicidade, guardado sob vidro contra a poeira e o esquecimento.
Sofia, agora uma mulher de trinta e poucos anos, com a urgência típica da cidade grande pulsando nas veias, estava de visita. O apartamento, que um dia fora um ninho de risadas infantis e jantares em família, agora pairava no ar um silêncio respeitoso, pontuado pelo tic-tac ruidoso do relógio na sala. Sofia desdobrava uma reportagem sobre a crise hídrica que se alastrava pelo país, o futuro incerto pintando-se de tons sombrios.
“Mãe, você viu isso? Parece que o Rio de Janeiro vai virar deserto em poucos anos”, disse Sofia, a voz embargada por uma preocupação que lutava para disfarçar. Dona Elza apenas balançou a cabeça, os olhos ainda perdidos na foto.
De repente, um tremor sutil percorreu a casa. Não era o barulho de um caminhão passando, mas algo mais profundo, como se a própria terra suspirasse. O café na xícara de Dona Elza ondulou. Sofia olhou para a janela, o céu, antes vibrante, agora tingido de um cinza opressivo, sem nuvens, como um sudário.
O silêncio se adensou. E então, algo incomum aconteceu. A luz da sala, antes morna e convidativa, começou a falhar, cintilando como uma vela prestes a se apagar. Sofia se virou para a poltrona de vime.
A foto.
Ela a encarava, os olhos arregalados. A figura de Joaquim, antes imóvel, parecia ter ganhado uma leve inclinação da cabeça, o sorriso um pouco mais melancólico. A pequena Sofia, na foto, parecia ter erguido a mão, como se tentasse alcançar algo. E Dona Elza… A Elza da foto parecia agora segurar não um pirulito, mas um punhado de areia seca, os dedos curvados como se quisessem conter o que escapava.
Um grão de poeira, que repousava na superfície do vidro, desprendeu-se e caiu, escorrendo lentamente pela superfície da imagem. Não era poeira. Parecia… areia. Sofia se aproximou, o coração martelando nas costelas. A textura da foto parecia ter mudado. O verniz parecia rachado, não por tempo, mas por algo mais. E um cheiro estranho, seco e terroso, começou a emanar da moldura.
Dona Elza, com um suspiro trêmulo, estendeu um dedo. “Joaquim… está tão… seco”, murmurou ela, a voz quase inaudível.
A luz piscou novamente, desta vez mais intensamente. As sombras dançaram pelos rostos na fotografia, distorcendo as feições. O rio que, em um canto da imagem, aparecia ao fundo, agora parecia um fio tênue, quase invisível.
Sofia sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Aquela não era uma foto que envelhecia, era uma foto que… se transformava. Ela se assemelhava a um aviso, um eco do futuro que eles tentavam ignorar. O sorriso de Joaquim parecia agora carregar o peso de uma partida iminente, a esperança se esvaindo como a água em um deserto. A curiosidade nos olhos de Sofia se transformava em um medo palpável, um pressentimento gelado que se espalhava pela varanda, pela cidade, pelo mundo.
Um vento seco e quente soprou pela porta entreaberta, trazendo consigo o cheiro de terra rachada e um murmúrio distante, como o lamento de um planeta ferido. A imagem na moldura, a cada piscada de luz, parecia se tornar mais nítida em sua desolação. Os sorrisos, antes tão plenos, agora pareciam gritos silenciosos. E Dona Elza, olhando para sua imagem jovem, parecia ver não o passado, mas um futuro a ser evitado.
A luz se apagou por completo, mergulhando a sala na escuridão. Mas na mente de Sofia, a imagem permanecia: o tempo emoldurado, ganhando vida, sussurrando um adeus que ainda não havia chegado, mas que já se sentia em cada grão de poeira que caía, incessantemente. E o silêncio que se seguiu não era de paz, mas de uma espera ansiosa pelo que o sol do dia seguinte traria. Ou, talvez, pelo que ele deixaria de trazer.
Por: Isabela Fernandes Couto

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