O Sussurro Soterra de Lúmen

O Sussurro Soterra de Lúmen

A poeira, espessa como o véu sobre um túmulo esquecido, dançava nos feixes trêmulos da lanterna de Clara. A geada úmida das paredes de pedra grudava em seus dedos calejados, e um cheiro de terra remexida e algo mais, algo pungente e ancestral, impregnava o ar. Lúmen, a cidade esquecida, jazia sob os pés de Clara, um segredo soterrado que ela, com sua obsessão por enigmas históricos, estava determinada a desenterrar.

Clara não era uma aventureira; era uma historiadora, uma meticulosa desvendadora de fragmentos do passado. Anos de pesquisa a trouxeram a este lugar, uma ruína murmurada em crônicas obscuras, um império que o tempo parecia ter decidido apagar da memória. As catacumbas, a entrada mais promissora para as entranhas de Lúmen, eram seu objetivo. Diziam que ali, no silêncio perpétuo, residiam os segredos de um povo outrora próspero.

Mas o silêncio de Lúmen não era vazio. Era uma tapeçaria de vozes submersas, de sussurros que se insinuavam nas frestas da sua consciência. A cada passo adiante, as paredes pareciam pulsar, e as sombras, antes imóveis, ganhavam vida própria. A princípio, ela as descartou como truques da luz e da sua imaginação sobrecarregada. Mas os sussurros se tornaram mais audíveis, fragmentos de diálogos em uma língua que, estranhamente, ela parecia compreender, embora nunca tivesse estudado. Eram lamentos, acusações, arrependimentos.

Uma passagem mais estreita, esculpida com uma precisão sobrenatural, a levou a uma câmara que não parecia um local de sepultamento. Havia um pedestal central, vazio, e nas paredes, entalhes intrincados que mais se pareciam com mapas mentais do que com decorações. E ali, gravado em cada símbolo, estava o peso esmagador de uma coletividade. Memórias. Não as suas, mas as de Lúmen. A fome, a traição, a escassez de água, as súplicas desesperadas para que algo, ou alguém, interviesse.

Clara sentiu um arrepio gelado percorrer sua espinha. As passagens não levavam apenas aos mortos; levavam ao inconsciente coletivo de um povo. E o que era mais perturbador, pareciam projetar essas memórias para dentro dela. Ela via, como se estivesse presente, o desespero em olhos outrora vibrantes, a fome que corroía corpos outrora fortes. Via as escolhas difíceis, as atitudes cruéis tomadas em nome da sobrevivência, as culpas que se acumularam como camadas de sedimentos ao longo das gerações.

A culpa de Lúmen começou a pesar sobre Clara como uma mortalha. Uma culpa que não era dela, mas que ela estava sendo forçada a sentir. A fome que eles passaram, ela sentia em seus próprios ossos. A traição que eles cometeram, ela sentia em sua própria garganta, a dificuldade de engolir a verdade. Os sussurros não eram mais de vozes distantes; eram ecos dentro da sua própria mente, misturando-se com seus pensamentos, distorcendo sua percepção da realidade.

Em uma sala mais funda, onde a escuridão era quase palpável, Clara encontrou um mural, um complexo mosaico de cenas que contavam a história de Lúmen, desde sua ascensão até seu declínio. Mas o que a assombrava era a última seção, a que narrava o “sacrifício” que permitiu a fuga de alguns e a condenação de muitos. Um sacrifício que envolvia não bens materiais, mas a própria essência da alma, a supressão de uma verdade inconveniente, a delegação da culpa para as gerações futuras.

Clara percebeu que as catacumbas de Lúmen eram um repositório de almas em agonia, presas não por cadeias, mas pelo peso das memórias não processadas e das culpas não confessadas. E ela, ao penetrar em suas profundezas, havia aberto uma porta para esse tormento. Começou a duvidar de sua própria sanidade. Os rostos que via nas sombras, os lamentos que ouvia, eram reais? Ou eram projeções da sua própria mente, sobrecarregada pela carga de um passado que não a pertencia?

Ela tentou fugir, mas as passagens pareciam se contorcer, os corredores se fechar. Os sussurros se tornaram mais intensos, um coro de vozes que a acusava de ser cúmplice, de perturbar o descanso eterno. A culpa de Lúmen estava se manifestando em seus medos mais profundos, em suas inseguranças mais ocultas.

Clara percebeu, com um terror crescente, que ela não estava apenas desvendando um segredo antigo; estava se tornando parte dele. O legado das catacumbas de Lúmen não era apenas um tesouro histórico, mas uma maldição, um fardo que se transferia para aqueles que ousavam perturbar o sono dos seus remorsos. E enquanto os sussurros ecoavam cada vez mais forte em sua mente, Clara sabia que uma parte de Lúmen, com todas as suas culpas e memórias sombrias, agora viveria nela, um fantasma perpétuo assombrando os recantos da sua própria alma. O desvendar do segredo a condenou a carregar o peso de um povo esquecido, para sempre aprisionada no labirinto de suas lembranças coletivas.


Por: Ricardo Soares Guedes

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