O sussurro que enlouquece.
A FEBRE NA CALADA
O cheiro forte de mofo e desinfetante pairava no quarto de Dona Carmem, um aroma que se misturava ao suor do corpo febril dela. Lá fora, o barulho constante da rua em Botafogo – sirenes distantes, buzinas impacientes, o grito agudo de um vendedor de picolé – parecia um eco abafado de um mundo que não mais lhe pertencia. Lia, a neta, sentada na poltrona gasta de estampa floral, sentia o peso de cada minuto sem um respiro real. A febre de Carmem subira de repente, como uma onda traiçoeira, roubando-lhe a lucidez em poucas horas.
Não era uma febre comum. Era uma febre que trazia consigo um sussurro. No início, Lia tentou ignorar. Pensou ser delírio, o corpo cansado clamando por alívio. Mas o sussurro persistia, sutil, quase inaudível, como o roçar de asas de mariposa nas cortinas amareladas.
“Ouça, Lia. Ele está aqui de novo”, Carmem murmurava, os olhos fixos no teto, a voz rouca e trêmula.
Lia se aproximava, a testa franzida. “Quem, vovó? Não tem ninguém aqui.”
“O homem. Ele fala comigo. Me diz coisas…” A voz sumia num suspiro fraco. Lia olhava ao redor, sentindo um frio na espinha que nada tinha a ver com o ventilador ligado no mínimo. Era o olhar perdido da avó, o medo infantil que voltava aos seus olhos.
“Coisas o quê, vovó?” Lia acariciava a testa suada, tentando decifrar a verdade por trás do delírio.
Carmem se encolhia, apertando o lençol fino. “Que eu não fui boa o suficiente. Que deixei tudo escapar. Que… que a culpa é minha.”
E o sussurro, para Lia, começou a ganhar contornos. Não era uma voz audível para ela, mas uma sensação, uma presença gélida que a envolvia quando se aproximava da cama. Uma pressão no peito, um nó na garganta. Um eco de arrependimento, talvez. Ou um medo primordial, latente, que Carmem, em sua fragilidade febril, projetava para o mundo.
“Vovó, isso é a febre falando”, Lia tentava ser firme, mas sua voz embargava. Ela se lembrava da avó, sempre tão forte, tão segura. A Carmem que cozinhava feijoada aos domingos com o avental impecável, que discutia política com os vizinhos com vivacidade, que lhe ensinara a costurar e a acreditar em si mesma. Agora, essa Carmem parecia se dissolver, levada por um murmúrio insidioso.
Os dias se arrastavam. O médico veio, receitou injeções, comprimidos amargos. A febre cedia um pouco, mas o sussurro se tornava mais persistente, mais penetrante. Carmem não falava mais *dele*, mas o olhar continuava a buscar algo no vazio, os lábios se moviam em silêncio, como se estivesse em diálogo constante com o vazio.
Lia começou a sentir. A presença gélida se manifestava agora em suas próprias noites insones. No silêncio da casa, no tic-tac implacável do relógio na sala, ela percebia uma distorção no ar, uma sombra escorregadia no canto do olho. O peso no peito voltava, mais forte. E um pensamento insidioso, como uma semente plantada, começava a germinar em sua mente: *E se não for a febre? E se for algo real?*
Ela se pegava em momentos de distração, os ouvidos atentos a um ruído inexistente, o coração disparado. O sussurro, agora, parecia falar sobre seus próprios medos, as inseguranças que ela guardava a sete chaves. Falava sobre a pressão de cuidar, sobre a exaustão, sobre a sensação de fracasso iminente.
Uma tarde, enquanto preparava um chá para a avó, ouviu um som distinto, um som que a fez paralisar. Parecia um lamento, muito baixo, vindo de dentro das paredes. Um som que a fez olhar para os azulejos frios da cozinha, para o chão cimentado, para o ventilador girando lentamente.
O sussurro parecia dizer seu nome.
O dilema a dilacerava. Deveria ela se entregar àquele medo que parecia sugar toda a razão de sua vida? Deveria acreditar que a doença de Carmem era contagiosa não em corpo, mas em alma? Ou deveria lutar, buscar uma explicação lógica, uma cura não para a febre, mas para o que quer que estivesse enlouquecendo sua avó, e, sutilmente, a ela também?
Uma noite, a febre de Carmem cedeu de vez. Ela acordou lúcida, os olhos claros, um leve sorriso nos lábios. Pediu água, e Lia, com as mãos trêmulas, a serviu.
“Estou melhor, querida”, disse Carmem, a voz ainda frágil.
Lia sentiu um alívio avassalador, mas também uma pontada de receio. O silêncio que se instalou, antes reconfortante, agora parecia pesado.
Carmem a olhou com ternura, mas havia algo de diferente em seu olhar. Uma profundidade que Lia não compreendia.
“Sabe, Lia”, Carmem começou, a voz baixa, quase um sussurro, mas agora sem o tom febril, apenas sereno, quase confidencial. “Às vezes, o silêncio é o lugar mais barulhento do mundo. E algumas coisas, quando são ditas apenas para nós mesmos, podem nos mudar para sempre.”
E Lia, olhando nos olhos da avó, sentiu o ar se adensar. A sensação gelada não a abandonara. O sussurro, agora, não era mais um eco da febre. Era uma promessa. Ou uma ameaça. Ela não sabia dizer. E enquanto Carmem adormecia pacificamente, Lia permaneceu acordada, escutando não os sons da rua, mas o silêncio dentro de si, temendo o que ele poderia sussurrar em seguida.
Por: Ricardo Soares Guedes

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