O Sussurro do Papel Tostado
O cheiro de café requentado era o aroma oficial do finado turno da noite da Delegacia de Copacabana. Naquela manhã, o ar pesado com o odor de bebida amarga e suor contido carregava uma nota dissonante, a fragrância ácida e levemente queimada de papel. Era o rastro dele.
A primeira vítima, uma senhora solitária conhecida por suas orquídeas no varandim, fora encontrada com uma folha de caderno delicadamente dobrada sobre o peito. As bordas, como se roçadas por uma brasa, tinham um tom marrom-claro, quase imperceptível, mas ali. O delegado Silva, um homem grisalho com olheiras que contavam histórias próprias, sentiu um calafrio estranho. Não era o trabalho de um ladrão comum.
A segunda, um jovem músico de rua que costumava tocar bossa nova no calçadão, apareceu dias depois, no Leme. A mesma folha, o mesmo toque sutil de queimado. As pontas, como se tivessem sido beijadas por uma vela em seu último suspiro. Silva mandou vasculhar os pertences, os contatos, qualquer coisa que pudesse ligar os dois, aparentemente, mundos tão distantes. Nada. A única semelhança era o modus operandi peculiar.
O terceiro, um professor aposentado de literatura, morador do Flamengo, foi descoberto em sua biblioteca, o cheiro de livros antigos se misturando ao da queimadura. A folha, agora com um leve amarelado que denunciava mais de uma passagem pelo fogo, repousava sobre o exemplar de Machado de Assis que ele tanto amava. Silva começou a sentir o peso de um padrão que se desdobrava como uma sombra. Não era um troféu, não era uma mensagem de ódio. Era algo mais sutil, um gesto peculiar que parecia carregar um significado oculto.
Sofia, a repórter investigativa do jornal local, uma mulher de olhar penetrante e cabelos rebeldes que pareciam refletir a agitação da cidade, batizou-o de “O Pirografo”. A imprensa se deleitou com o mistério, alimentando o medo nas ruas, transformando o Rio em um palco de suspense. Para Silva, era um tormento. Cada nova notícia, cada teorização vazia, o afastava da verdade. Ele via os rostos assustados nos ônibus, as mulheres apressando o passo ao anoitecer, e sentia a responsabilidade pesando em seus ombros.
Ele passava noites em claro, imerso em relatórios, em fotos das cenas do crime, buscando uma brecha, um fio condutor. O papel tostado. O que significava? Uma carta nunca enviada? Uma confissão adiada? Um ritual macabro? Ele imaginava mãos delicadas, ou talvez trêmulas, aproximando o papel de uma chama. Uma forma de purificação? De apagamento?
A quarta vítima, uma professora de artes plásticas que morava na Tijuca, mudou tudo. Ao lado do corpo, não havia uma folha de caderno, mas um pedaço de tela, com uma minúscula ponta levemente chamuscada. Silva quase não acreditou. O padrão estava se expandindo, se adaptando. Não era apenas papel. Era uma superfície, uma tela para algo que o assassino desejava expressar, ou talvez, para algo que ele ansiava apagar.
Sofia o confrontou no corredor da delegacia, o cheiro de café velho a acompanhando. “Delegado, o que o senhor acha que ele está dizendo com isso? É um código? Uma assinatura?”
Silva suspirou, o peso do Rio em sua voz. “Eu não sei, Sofia. Mas tenho a impressão de que ele não está matando. Ele está tentando se livrar de algo. Ou de alguém. E essas queimaduras… são como cicatrizes que ele deixa, ou que ele quer que nós vejamos.”
Ele olhou para a janela, para o sol que começava a pintar o céu de um rosa pálido, revelando a vastidão da cidade. Milhões de histórias se desenrolavam ali, anônimas, confidenciais. E em algum lugar, alguém estava riscando, queimando, apagando. E cada folha, cada pedaço de tela, parecia um sussurro silencioso, um convite para decifrar um enigma que, talvez, fosse mais pessoal do que qualquer um deles podia imaginar. O eco do papel tostado pairava no ar, um prenúncio de um segredo que ainda ardia, invisível, sob a superfície reluzente do Rio.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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