O Sussurro do Manguezal

O Sussurro do Manguezal

O cheiro era a primeira coisa. Uma mistura acre de sal, barro úmido e algo mais, algo doce e em decomposição que Elara Vance já conhecia bem demais. O crepúsculo lançava sombras longas e dançantes sobre o manguezal que se estendia até a beira da cidade de São Luís, um labirinto intrincado de raízes aéreas e águas escuras. Era ali, em uma pequena clareira a poucos metros da trilha batida usada pelos pescadores, que ela fora encontrada.

A vítima, João Lucas, 23 anos. Um rapaz de sorriso fácil, pelos relatos, com sonhos que insistiam em transbordar para a dura realidade. O legista, Dr. Arnaldo, um homem de poucas palavras e mãos firmes, já havia terminado seu trabalho preliminar. O corpo, surpreendentemente intacto para o lugar, estava posicionado de forma peculiar. Como se tivesse sido cuidadosamente depositado ali, e não arrastado ou jogado.

“Não há sinais de luta, Arquivista”, disse Arnaldo, limpando as mãos em um pano. “Nem mesmo os arranhões típicos de quem se debate contra a vegetação densa. E o estado de conservação… como se estivesse aqui há no máximo umas 12 horas. E a maré… o João Lucas não teria chegado a esse ponto sem se molhar, sem ter seu corpo tomado pela água lamacenta. É como se ele tivesse parado o tempo para chegar aqui.”

Elara acariciou a madeira áspera de uma árvore. O silêncio do mangue era quase palpável, quebrado apenas pelo grasnar distante de uma ave e o suave bater das ondas. João Lucas trabalhava em uma loja de eletrodomésticos no centro, morava com a mãe, Dona Lúcia, em uma casa modesta no Jaracati. Um bairro agitado, repleto de vida, longe, muito longe, do silêncio fétido deste lugar.

Dona Lúcia era um retrato de dor contida. Olhos inchados, as mãos que outrora moldavam quitutes para vender agora tremiam segurando uma fotografia amarrotada do filho. “Ele não vinha aqui, doutora. Jamais. Tinha medo. Dizia que o mangue parecia ter dentes.” A voz dela era um fio frágil. “Ele… ele andava meio estranho nas últimas semanas. Distraído. Olhava para o nada. Eu perguntei, mas ele só dizia que estava cansado. Cansado de quê? Ele tinha tanta vida dentro de si.”

Elara sentiu o peso das palavras. A vítima não tinha inimigos conhecidos, nem dívidas, nem namoros conturbados. A vida de João Lucas, na superfície, era tão comum quanto o amanhecer em São Luís. E ainda assim, ele estava ali, em um local que desafiava a lógica.

Ela voltou ao manguezal no dia seguinte, com a luz do sol perfurando a folhagem espessa. Observou a trilha, os caminhos sinuosos que os pescadores abriam com o tempo. Viu as pegadas marcadas na lama, a dança das marés que mudava tudo a cada hora. E então, ela notou. Uma fina camada de poeira vermelha, quase imperceptível, presa em algumas folhas baixas, um pouco mais adiante da trilha, em direção ao corpo. Uma poeira que não pertencia àquele solo salgado e escuro.

Uma poeira que lembrava algo… a terra vermelha dos canteiros de obras. Elara se lembrou de uma conversa recente com um colega sobre os novos condomínios em construção nas áreas mais afastadas da cidade. Um lugar onde João Lucas, teoricamente, não teria motivo para estar.

Os dias seguintes foram um mergulho nos detalhes: os registros telefônicos de João Lucas, que mostravam ligações frequentes para um número desconhecido em horários tardios; as imagens de câmeras de segurança de um posto de gasolina próximo à área de construção, onde um carro semelhante ao de João Lucas foi visto parando por breves momentos em noites recentes. E o mais inquietante: um pequeno caderno encontrado sob o colchão de João Lucas, com anotações cifradas e desenhos abstratos que pareciam evocar o próprio manguezal.

Uma noite, sentada em sua sala, sob a luz fraca de um abajur, Elara folheava o caderno. Uma página em particular a intrigou. Um desenho de um círculo irregular, com linhas que se estendiam para fora, como raízes ou tentáculos. Abaixo, uma única palavra escrita com a caligrafia trêmula de João Lucas: “Chama”.

Chama. Um nome. Um lugar. Uma promessa.

Elara sentiu um arrepio. A investigação de João Lucas se transformava, cada vez mais, em um enigma sobre desejos ocultos e fugas improváveis. Quem seria “Chama” para atrair um jovem comum para a beira de um manguezal que ele temia? E como ele chegou ali, intacto, como se tivesse sido levado pelo próprio sussurro da maré? A resposta, Elara sabia, estava escondida não apenas nos vestígios materiais, mas nas profundezas silenciosas da alma de um rapaz que buscava algo mais, em um lugar onde nada mais parecia existir. A questão era se o que ele buscava o encontrou, ou se ele foi encontrado. O mangue, com sua sabedoria sombria, guardava o segredo. E Elara, a Arquivista do Crepúsculo, estava destinada a desvendar cada sombra.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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