O Sussurro do Engenho Adormecido

O Sussurro do Engenho Adormecido

O sol baiano, implacável e dourado, beijava as paredes históricas de Salvador, mas no coração de Rafael, um jovem professor de história recém-chegado à cidade, o ar pairava pesado com a poeira de séculos. Ele não buscava os roteiros turísticos habituais, mas sim as frestas esquecidas do tempo, os murmúrios que a cidade tentava silenciar. Foi assim que, entre pilhas de livros empoeirados na biblioteca da UFBA, ele se deparou com o nome: Engenho da Lua Quebrada.

O nome em si já era uma melodia sinistra. As poucas menções eram fragmentadas, quase mitológicas, misturando relatos de um passado glorioso de produção de açúcar com sussurros de uma tragédia que culminou em seu abandono. Uma lenda urbana peculiar florescia em torno dele: a de que, em noites de lua cheia, os lamentos dos escravos que ali trabalhavam podiam ser ouvidos, misturados a um grito agudo, o eco de um feitor cruel que, diziam, havia sido amaldiçoado.

Rafael, fascinado pela mescla de História e folclore, mergulhou na pesquisa. Passava horas na biblioteca, decifrando caligrafias desbotadas, entrevistando anciãos em bairros como o Pelourinho, onde as histórias pareciam ter raízes mais profundas. O que começou como um projeto acadêmico, logo se transformou em uma obsessão.

Descobriu que o engenho pertencia à família Mendonça, uma das mais ricas e influentes da época colonial. Os registros oficiais falavam de prosperidade, mas os relatos populares pintavam um quadro sombrio de exploração brutal, de vidas ceifadas em nome do lucro. A figura central da lenda, um certo Capitão Eustáquio, despontava como a encarnação da crueldade. Relatos o descreviam como um homem sem escrúpulos, que não hesitava em infligir castigos severos, inclusive a morte, para manter a ordem e a produtividade.

A pista que faltava veio de uma velha senhora, Dona Clara, cujos olhos azuis, emoldurados por rugas como rios secos, guardavam a sabedoria de décadas. Ela morava perto das ruínas do engenho, um local envolto por uma vegetação densa e sombria. “Ah, o Engenho da Lua Quebrada…”, suspirou ela, a voz embargada por uma tristeza antiga. “Meu avô contava… diziam que o Capitão Eustáquio não se contentava em açoitá-los. Ele gostava de quebrar. Quebrar cana, quebrar ossos, quebrar esperanças. Diziam que, na noite em que um escravo tentou fugir e foi capturado, o Capitão o levou até a roda d’água e o afogou, enquanto ria. E a lua, naquela noite, parecia chorar sangue.”

As palavras de Dona Clara ecoaram em Rafael como um trovão distante. Ele sentiu um arrepio subir pela espinha, mas a necessidade de comprovar a lenda era maior que o medo. Adquiriu um pequeno terreno adjacente às ruínas e, com o auxílio de alguns locais, começou a explorar. As ruínas eram um esqueleto de pedra e madeira apodrecida, um testemunho silencioso de um passado violento.

Em uma tarde particularmente abafada, enquanto examinava a base de uma antiga moenda, sua pá bateu em algo. Era um fragmento de cerâmica com inscrições. Com cuidado, limpou a terra e revelou um símbolo estranho, que ele reconheceu de um livro antigo sobre rituais africanos: um círculo com uma linha diagonal atravessando-o, um sinal de aprisionamento.

A pesquisa se tornou ainda mais intensa. Rafael descobriu que, para quebrar o ciclo de sofrimento e garantir a prosperidade do engenho, os senhores de escravos frequentemente usavam métodos cruéis para subjugar os espíritos rebeldes. A lenda do Capitão Eustáquio, ele percebeu, não era apenas um conto de terror, mas sim a manifestação de uma memória coletiva de dor e opressão, agravada por um ato de extrema crueldade que, segundo as crenças da época, poderia ter invocado uma energia maligna.

Em uma noite de lua cheia, Rafael se dirigiu às ruínas. A atmosfera era densa, carregada. O vento uivava entre as árvores, soando como lamentos distantes. Ele sentiu uma presença, um frio inexplicável que penetrava até os ossos. A lua, um disco prateado no céu escuro, parecia observar com um olhar gélido.

Com o fragmento de cerâmica em mãos, Rafael começou a recitar um antigo encantamento que havia encontrado em seus estudos. Era um ritual de libertação, de desatar os nós de uma energia presa. Ele sentiu a atmosfera se adensar ainda mais. Sombras dançavam nas ruínas, mais nítidas do que deveriam ser.

De repente, um som cortou o ar: um grito agudo, cheio de fúria e desespero, que parecia vir de todos os cantos ao mesmo tempo. Rafael cambaleou para trás, o coração martelando. Ele viu, ou pensou que viu, vultos indistintos se contorcendo nas ruínas. Eram como imagens embaçadas de sofrimento, de açoites, de suor e de sangue.

Ele havia desvendado a verdade. O Capitão Eustáquio não era apenas uma figura histórica, mas a personificação da crueldade, e seu ato final, o afogamento do escravo, havia selado uma energia de dor que se manifestava através das memórias coletivas do local. Ao tentar libertar essa energia, ele a despertou.

A assombração não se manifestava como um fantasma corpóreo, mas sim através de flashes de memória. Rafael começou a “ver” o passado. Em sua mente, as imagens eram vívidas: a moenda girando freneticamente, o cheiro acre do melaço, os gritos abafados dos escravos. Ele sentia a dor em seus ombros, o peso da carga, o medo constante. As memórias coletivas, uma teia de sofrimento tecida ao longo de gerações, haviam encontrado nele um receptáculo.

Nos dias que se seguiram, a vida de Rafael se transformou em um tormento. As memórias do engenho o assaltavam em seus sonhos, em momentos de vigília, em cada canto de Salvador que possuía vestígios do passado escravista. Ele sentia a opressão, a injustiça, a desumanidade. A lenda urbana havia se tornado a sua realidade.

Ele percebeu que o seu ato de desvendar a verdade não havia trazido paz, mas sim liberado um eco poderoso de um passado que Salvador ainda lutava para confrontar. A assombração era o próprio peso da história, a manifestação das feridas não curadas que ainda pulsavam sob a pele vibrante da cidade.

Rafael, o jovem professor que buscava a história, agora carregava o fardo de suas memórias. Ele sabia que sua tarefa não terminara ali. Precisava, de alguma forma, dar voz a esses ecos, a esses gritos silenciados, para que a história, em toda a sua complexidade e dor, pudesse finalmente começar a se curar. O Engenho da Lua Quebrada, adormecido por séculos, agora sussurrava através dele, exigindo ser ouvido.


Por: João Pedro Silveira

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