O Sussurro do Barro
O barro sob as mãos de Aurora era mais que argila; era a matéria-prima de um diário silencioso. Em sua pequena oficina em Tiradentes, o cheiro terroso e úmido se misturava ao aroma adocicado das flores de jasmim que trepavam pela janela. Cada vaso que nascia ali não era apenas um recipiente, mas um receptáculo de memórias. Havia um que guardava a melodia do choro do primeiro neto, as ondas sonoras moldadas na superfície irregular. Outro, as cores vibrantes da festa junina da vila, o vermelho e amarelo impregnados em um esmalte que parecia dançar sob a luz.
Aurora, com seus cabelos grisalhos presos em um coque frouxo e as unhas eternamente marcadas pelo trabalho, passava horas em contemplação. Ela não vendia vasos; ela os confiava a quem soubesse ouvir as histórias que o barro sussurrava. Seus clientes eram poucos, escolhidos a dedo: vizinhos que sentiam a saudade de um tempo que a vila parecia esquecer, colecionadores que buscavam a alma em objetos e, de vez em quando, turistas com olhos atentos que reconheciam a magia em suas mãos calejadas.
O problema, contudo, morava além das paredes de sua oficina. Um homem chamado Juvenal, com seu sorriso que escondia uma ambição voraz e o brilho de mercador em seus olhos, havia descoberto o valor – o valor que Aurora não via. Ele frequentava as feiras de artesanato, seu discurso polido disfarçando o instinto de predador. Começou comprando alguns vasos, elogiando a “criatividade única” de Aurora, usando palavras que ela não se importava em decifrar, desde que o dinheiro, que lhe permitia comprar mais barro e um novo pincel, entrasse.
Mas a ganância de Juvenal era um rio que transbordava. Ele começou a “adquirir” os vasos de Aurora por vias menos honestas. Com falsas promessas de exposições em Belo Horizonte, levava peças que levavam meses para serem criadas, para depois vendê-las em galerias luxuosas de São Paulo, como se fossem criações de um artista anônimo e exótico. A fragrância do jasmim em sua oficina de repente parecia sufocada pelo cheiro de dinheiro sujo.
Um dia, dona Carmela, vizinha de Aurora e devota de seu trabalho, voltou da capital com uma história perturbadora. Em uma loja elegante, entre peças sem alma, ela viu um vaso. Era o que Aurora havia feito para celebrar o primeiro raio de sol depois de uma longa e dura chuva de inverno. Tinha a cor e a textura da esperança renascida. Ao lado, um pequeno letreiro informava: “Vaso da Nova Era – Coleção Exclusiva Juvenal”. Dona Carmela sentiu o chão sumir.
Aurora sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Aquele vaso não era um objeto comum; era a personificação de um momento de pura gratidão. Juvenal não roubara apenas argila e esmalte, roubara um pedaço de sua alma, um capítulo de seu diário de vida.
Naquele dia, Aurora não fez mais vasos. Sentou-se à beira de sua roda, as mãos sujas de barro pousadas sobre a madeira fria. O sol se punha atrás das montanhas, pintando o céu com tons de laranja e roxo, cores que ela amava misturar em seus esmaltes. Ela pensou nas histórias contidas em cada peça, nas alegrias, nas tristezas, nos momentos singelos que ela transformava em arte. E pensou em Juvenal, com seus dedos ágeis em manipular não o barro, mas as pessoas, transformando a autenticidade em lucro, o sussurro em grito de marketing.
A porta da oficina rangeu. Era Juvenal, mais uma vez, um sorriso largo no rosto, uma caixa de papelão nas mãos. “Aurora, querida! Trouxe algo para você ver. Tenho um comprador especial em São Paulo que vai adorar suas novas criações. E já separei aquela peça com as mariposas, tão delicada…”
Aurora ergueu os olhos. Em suas mãos, sem que ela percebesse, suas unhas haviam começado a cavar um sulco profundo na superfície da roda de cerâmica, um desenho tortuoso e incerto. O sussurro do barro parecia mais forte agora, um lamento antigo, um chamado para algo que ela ainda não conseguia nomear. O que faria uma artista cujo trabalho era roubado por quem não sabia ouvir? O que se faz quando as histórias que você conta se tornam propriedade alheia, despojadas de sua essência?
Por: Ricardo Soares Guedes

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