O Sussurro das Vagas
O cheiro de desinfetante barato e de suor infantil era o perfume constante do Lar Santa Clara. Não era um perfume que se espalhasse em brisas frescas, mas sim um aroma persistente, preso nas paredes desbotadas, nas colchas surradas, nos uniformes ásperos que arranhavam as peles sensíveis. A luz do sol, quando conseguia penetrar as grades enferrujadas das janelas altas, pintava finas linhas de poeira dançante no ar.
Maria Cecília, a inspetora mais antiga, com seus cabelos grisalhos presos num coque rígido e um nó permanente na testa, suspirou. Mais um dia. Mais um café ralo, mais uma lista de nomes a serem checados, mais um punhado de rostos ansiosos a serem recebidos. O problema não era a falta de amor, o Lar Santa Clara sempre transbordou dele, um amor que se manifestava em pães amanhecidos com mais manteiga, em abraços apertados disfarçando a dor da ausência, em olhares que prometiam um futuro melhor que o presente.
O problema era o que acontecia com as promessas.
O último foi Léo. Um garoto magricela, com olhos que pareciam abrigar o céu noturno de São Miguel do Gostoso, onde ele dizia que morava antes. Chegou há seis meses, trazido pela Assistência Social com um jaleco branco amassado e um sorriso tímido que se desfez no primeiro mês. Ele adorava desenhar as gaivotas que sobrevoavam a cidade imaginária em seu caderno surrado. Uma manhã, seu lugar à mesa do café estava vago. A cama, impecavelmente arrumada como de costume, estava fria. Nenhum rastro.
Antes dele, foi a pequena Clara. Dez anos, cachos rebeldes e uma imaginação que pintava cores vibrantes no cinza do orfanato. Ela costumava falar com as borboletas no jardim, sussurrando segredos que só elas podiam ouvir. Sumiu numa tarde de chuva fina, enquanto todos estavam reunidos na sala para assistir a um filme antigo na televisão barulhenta.
Ninguém via nada. Ninguém ouvia nada. As portas do Lar Santa Clara eram vigiadas, os muros eram altos. As crianças simplesmente… deixavam de estar ali.
Dona Helena, a diretora com seu olhar cansado e as mãos sempre manchadas de tinta de caneta, tentava manter a calma. Ela falava em “desaparecimentos”, em “fuga”, em “busca por novas oportunidades”. Mas seus olhos, sempre úmidos quando falava com Maria Cecília em particular, traíam a verdade. Havia algo mais. Um vazio que se instalava a cada nova ausência, mais profundo que a saudade dos pais que muitos nem conheciam.
No quarto de Léo, Maria Cecília encontrou o caderno. Estava aberto na última página desenhada: um barco singrando um mar azul-turquesa, com uma única gaivota voando acima. Debaixo do desenho, quase imperceptível, uma frase escrita com a letra trêmula do menino: “O mar chama.”
Naquela noite, enquanto a cidade adormecia sob um manto de estrelas pálidas, Maria Cecília sentiu um frio na espinha que não era do ar condicionado quebrado do corredor. Sentiu a sugestão de um sussurro, um eco distante que parecia vir do lado de fora, do horizonte, da promessa de um lugar onde as gaivotas voam livremente e o mar chama. Ela olhou para a janela do seu quarto, para a escuridão que engolia o jardim. E pela primeira vez, teve a sensação incômoda de que as vagas não eram apenas lugares vazios, mas sim convites. E que alguém, ou algo, estava atendendo a eles.
Por: Ricardo Soares Guedes

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