O Sussurro das Ruínas

O Sussurro das Ruínas

O cheiro de mofo e terra molhada era a primeira coisa que te atingia. Não um mofo agressivo, mas um suave, quase doce, de madeira envelhecida e folhas em decomposição. A Casa da Dona Flora, como todos a chamavam no vilarejo de Boa Vista, era uma casca de barro e telhas quebradas, com um portão de ferro torcido que rangia em protesto a qualquer brisa mais forte. Mas, para aqueles que chegavam com o peso do mundo nas costas, ela era um farol. Um refúgio inabalável.

Fernanda chegou primeiro. O ônibus sacudiu-a pela estrada de terra batida, a mala pesada em seu colo, o olhar fixo em nada. Aos trinta e poucos anos, o divórcio a deixara descalça, sem rumo. Viu a Casa da Dona Flora de longe, um ponto sombrio contra o céu azul da tarde, e sentiu uma atração inexplicável. Parecia um lugar onde as mágoas não ousavam penetrar.

O portão rangeu para ela também. O interior era escuro, mas acolhedor. Poeira dançava nos raios de sol que filtravam pelas frestas das janelas, iluminando móveis cobertos por lençóis brancos, como fantasmas silenciosos. Em uma parede, um papel desbotado, com caligrafia elegante, dizia: “Quem busca abrigo encontra paz. O tempo aqui é um rio manso.”

Logo depois dela, veio Seu Joaquim. Um senhor de cabelos grisalhos e mãos calejadas, que perdeu a roça para uma seca implacável e a esperança para um coração partido. Acreditou nas histórias que corriam sobre a casa, que ali as feridas da vida curavam com o tempo, que a solidão se desfazia como névoa.

E depois Elias, um jovem de olhos inquietos, fugindo de um passado turbulento em busca de um recomeço que parecia impossível em qualquer outro lugar. As ruínas, com sua beleza melancólica, pareciam entender a escuridão que ele carregava.

Os dias na Casa da Dona Flora eram estranhamente simples. O som dos pássaros, o crepitar da lenha na lareira improvisada na sala de estar, as conversas sussurradas enquanto descascavam batatas no quintal úmido, onde um pé de jabuticaba teimoso ainda dava frutos. Fernanda descobriu o prazer de ler à luz de velas, sentindo o peso do dia se dissipar com as palavras. Seu Joaquim encontrou conforto em consertar o que estava quebrado na casa, um trabalho que dava sentido às suas mãos, um propósito que lhe fora roubado. Elias passava horas no jardim, cuidando das ervas daninhas, encontrando um tipo de terapia no silêncio da terra.

Não havia regras explícitas, apenas um entendimento tácito. A casa era um refúgio, e o refúgio exigia respeito. O respeito pelo espaço, pelo silêncio, e mais importante, pelo refúgio que cada um buscava. Mas a casa também cobrava seu preço, um preço que ninguém via chegando.

Uma noite, uma tempestade violenta assolou Boa Vista. A chuva batia com fúria contra as paredes antigas, e os trovões pareciam rugir dentro da alma. Fernanda, encolhida em seu colchão, sentiu a fragilidade da casa, a fragilidade da sua própria existência. Elias, com seu passado assombrando-o mais do que nunca, viu as sombras dançarem nos cantos, e o refúgio se tornar uma armadilha. Seu Joaquim, olhando pela janela quebrada para o céu escuro, sentiu que a solidão que ele tanto tentava afastar era a única companheira fiel que lhe restava.

Na manhã seguinte, a chuva cessou, deixando para trás um ar renovado e um silêncio profundo. O sol raiou, pintando o mundo de cores vibrantes. Fernanda, sentada na varanda com uma caneca de café fumegante, observou as gotas de água pingando das folhas da jabuticabeira. Ela sentiu que algo havia mudado, não na casa, mas dentro dela. A promessa de refúgio não era a ausência de problemas, mas a força para enfrentá-los.

Seu Joaquim, com um sorriso cansado, continuava a remendar o telhado, um fio de esperança teimando em se mostrar. Elias, de pé no jardim, olhou para o céu azul com uma serenidade que não possuía há muito tempo.

A Casa da Dona Flora continuava ali, um eco silencioso de histórias e promessas. E, enquanto o sol aquecia suas paredes desoladas, ela continuava a atrair aqueles que precisavam de um lugar para simplesmente existir, para respirar, para, talvez, encontrar um pedaço de si mesmos em meio às ruínas. Mas o que eles encontravam ali, afinal? Um alívio temporário, um aprendizado doloroso, ou a semente de uma força que só florescia quando o refúgio se tornava um convite à resiliência? A casa guardava o segredo, sussurrando apenas para aqueles dispostos a ouvir.


Por: Elara Vance, a Arquivista do Crepúsculo

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