O Sussurro da Escada Quebrada
O cheiro úmido de mofo e terra batida era a primeira saudação do porão. Dona Elvira desceu os degraus de madeira com a cautela de quem pisa em ovos. Cada rangido da escada, outrora firme, era um lembrete da casa que envelhecia junto com ela. Naquele dia, porém, um som diferente se misturava ao habitual lamento da estrutura: um sussurro.
Era um fiapo de voz, delicado como teia de aranha, quase inaudível. Parecia vir do canto mais escuro, onde as velhas malas de couro repousavam em pilhas esquecidas. Um nome foi pronunciado, um som que fez a pele de Dona Elvira arrepiar, mas que escapava à sua memória. Um nome que parecia familiar e, ao mesmo tempo, estranho, desprovido de peso e identidade.
“Catarina…”
O nome pairou no ar frio, sem encontrar ressonância nos ecos da casa. Dona Elvira apertou o xale em seus ombros, o coração batendo descompassado no peito. Catarina não era um nome que ela conhecesse. Ou seria? A memória, essa velha traidora, brincava com ela.
Ela desceu os últimos degraus e acendeu a lâmpada fraca. O porão se revelou em sua penumbra familiar: potes de conserva reluzindo vagamente, a bicicleta enferrujada do neto Gabriel, caixas empoeiradas repletas de memórias empoeiradas. Mas o sussurro persistia, agora mais claro, um lamento suave.
“Catarina… onde você está?”
Dona Elvira era uma mulher de rotina. Aos seus setenta e poucos anos, seus dias eram marcados pelo preparo do café, a leitura do jornal na varanda e os cuidados com o pequeno jardim de samambaias. O porão era um lugar de armazenamento, não de assombrações. A filha, Ana, sempre a advertia sobre descer ali sozinha, temendo que ela tropeçasse. Mas Ana morava longe, em São Paulo, e as visitas eram esporádicas.
“Catarina…”
A voz, por mais etérea que fosse, parecia impregnada de uma dor antiga. Dona Elvira se aproximou das malas, o assoalho rangendo sob seus pés. A curiosidade a puxava, uma força estranha que a impedia de recuar. Quem era Catarina? Por que sua voz parecia ecoar de um lugar tão esquecido?
De repente, um pensamento cruzou sua mente como um raio. O nome. Era o nome que ela e o falecido marido, Seu Joaquim, haviam pensado para a filha que nunca chegou a ter. Uma gravidez interrompida, uma perda que ela enterrara tão fundo que quase esquecera. Eles haviam desistido de nomeá-la.
“Catarina…” o sussurro se tornou mais insistente, como um pedido mudo.
Dona Elvira sentiu um aperto no peito. A voz não era de um fantasma qualquer. Era um eco da sua própria dor reprimida, um lamento pela vida que nunca foi. Ela abriu uma das malas. Dentro, roupas de bebê, amareladas pelo tempo, um pequeno sapatinho de crochê, um medalhão com a inicial “J”.
Ela pegou o medalhão. O metal frio em sua mão pareceu aquecer com uma lembrança fugaz de um toque suave, de um sorriso gentil. Ela nunca falara abertamente sobre Catarina com Ana. Era uma ferida que não cicatrizava, apenas se tornava uma crosta superficial.
O sussurro parou. Um silêncio pesado se instalou no porão, apenas quebrado pela respiração ofegante de Dona Elvira. Ela fechou a mala lentamente, seus dedos roçando a dobra do tecido fino. O porão não era mais apenas um lugar de coisas guardadas, era um receptáculo de memórias silenciadas.
Ao subir os degraus, o ar fresco da casa pareceu invadi-la. Ela não sentia mais medo, mas uma melancolia profunda, misturada a uma estranha paz. O nome que não existia mais, agora encontrava um eco dentro dela. Naquele dia, Dona Elvira não desceu ao porão em busca de nada. Ela desceu porque algo a chamava, uma parte de si que ela havia tentado esquecer. E, ao encontrar o sussurro, ela compreendeu que algumas vozes, mesmo fantasmagóricas, jamais desaparecem. Elas apenas esperam o momento certo para serem ouvidas.
Por: Beatriz Almeida Vianna

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