O Sopro na Mata
O cheiro agridoce de maresia e mangue entranhava nas narinas de Jonas, um aroma familiar, mas que agora trazia o gosto amargo do pânico. O Cessna 210, antes um companheiro fiel em rotas entre o Rio e a costa do Nordeste, agora era um amontoado de metal retorcido na areia úmida. A queda fora um borrão de gritos, estilhaços e a sensação nauseante de desintegração. Ele, e quem mais? A memória insistia em se fragmentar, como cacos de vidro espalhados pelo naufrágio de sua consciência.
Lentamente, ele se sentou, a dor latejando na costela esquerda. Ao redor, o verde denso da mata atlântica, um muro intransponível que parecia engolir a linha do horizonte. O sol, ainda alto, castigava a pele, e o suor misturava-se ao sal que grudava em seu rosto. A praia era estreita, flanqueada por falésias e a promessa de um mar implacável.
O primeiro a emergir dos destroços foi Samuel, o engenheiro aposentado que viajava para rever a família em Salvador. Tinha o rosto marcado pela fuligem, mas um lampejo de determinação nos olhos azuis. Logo depois, Dona Lúcia, a pastora evangélica de Sobral, com um ferimento na testa que sangrava moderadamente. A última a sair, cambaleando, foi a jovem estudante de arte, Clara, de Minas Gerais, abraçando uma pasta de desenhos que parecia incrivelmente fora de lugar naquele cenário.
Quatro almas naufragadas em um palco que não lhes pertencia. As primeiras horas foram de um pragmatismo quase surreal. O lixo da aeronave, as mochilas salvas, uma caixa de primeiros socorros mal abastecida. Jonas, com sua experiência de voo, assumiu uma liderança tácita, ditando as prioridades: água, abrigo, sinalização.
Samuel, com suas mãos calejadas, era mestre em improvisar. Conseguiu, com pedaços do avião e galhos secos, montar um abrigo rudimentar, algo que os protegesse do sol causticante e da umidade da noite. Dona Lúcia, com sua voz firme e suave, trazia um consolo inesperado, entoando hinos que pareciam ecoar nos ouvidos de ninguém, mas que, de alguma forma, acalmavam os corações aflitos. Clara, no entanto, permanecia retraída, seus olhos grandes observando tudo com uma intensidade que Jonas não conseguia decifrar. Ela desenhava em um pequeno caderno, capturando as formas retorcidas do avião, a textura rugosa das árvores, a angústia no rosto dos sobreviventes.
Os primeiros dias foram de esperança. A cada avião que passava ao longe, um grito coletivo de alívio, um aceno frenético. Mas as noites eram longas e frias. O som das ondas, inicialmente reconfortante, tornava-se um monstro que rosnava nas trevas. E, então, vieram os ruídos.
Não eram os sons habituais da mata. Um farfalhar mais grave, um rasgar de folhas que parecia intencional. Um estalo de galho seco, demasiado próximo para ser um animal comum. Jonas sentiu o ar ficar mais denso, um arrepio que não era apenas do frio. Samuel, sempre o mais cético, atribuía ao vento, à imaginação fértil de quem se sente à mercê da natureza.
Mas os ruídos persistiram. E, em uma noite especialmente escura, quando o luar mal se infiltrava pela densa folhagem, um grito rasgou o silêncio. Clara, pálida como um fantasma, apontava para a escuridão. “Eu vi. Tinha olhos. Brilhantes.”
O medo, até então um convite discreto, agora se instalava, voraz, em suas entranhas. A ilha, antes um refúgio de sobrevivência, transformara-se em um palco de caça. Algo, indescritível e sombrio, espreitava na mata, alimentando-se do desespero.
As tentativas de fuga tornaram-se mais urgentes. Samuel tentou consertar um rádio improvisado, mas a interferência era constante. Dona Lúcia rezava com mais fervor, pedindo um milagre, uma intervenção divina. Jonas, com o instinto de sobrevivência aguçado, explorava os arredores, buscando um ponto mais alto, uma chance de avistar um barco, um sinal de civilização.
Foi em uma dessas explorações que ele encontrou. Um rastro. Não de patas, mas de um arrastar lento, pesado, que quebrava os galhos de forma peculiar. E o cheiro. Um odor pútrido, metálico, que o fez vomitar. Ele voltou para o acampamento com o coração disparado, a certeza se cristalizando em sua mente: não eram apenas sons. Algo real, e terrível, os perseguia.
Naquela noite, o arrastar se aproximou. As sombras pareciam dançar, contorcer-se. Um sussurro rouco, gutural, ecoou pela mata. Clara chorava baixinho, abraçando a si mesma. Samuel, com um pedaço de metal em punho, tentava manter a calma, mas seus olhos traíam o pânico. Dona Lúcia, com a voz trêmula, começou a entoar uma oração mais forte, quase um grito de guerra.
Jonas sentiu o pavor se misturar à adrenalina. A sobrevivência, antes uma batalha contra a fome e o tempo, agora era uma luta contra o desconhecido. Ele sabia que não poderiam ficar ali. Precisavam se mover, arriscar. Mas para onde? A mata fechada, o mar implacável, e aquilo que os caçava, espreitando nas sombras.
O último som que ouviram naquela noite, antes do silêncio assustador que se seguiu, foi um grunhido baixo, próximo demais, seguido por um estalo agudo, como um osso a quebrar. E então, apenas o barulho das ondas, que pareciam engolir os gritos que não puderam ser emitidos. Jonas sabia que a próxima noite seria um teste final. E a ilha, em sua beleza cruel, guardava seu segredo. O que restaria, e se restaria algo, seria o teste derradeiro da resiliência humana, ou de sua fragilidade diante do que a natureza, em seus recantos mais obscuros, podia engendrar.
Por: Ricardo Soares Guedes

Deixe um comentário