O Sopro Frio na Ribeira

O Sopro Frio na Ribeira

O cheiro de maresia, misturado ao mijo de cachorro e ao azedo da fermentação das latas amassadas, era o perfume noturno da Ribeira. Dona Lúcia, com o avental sujo de farinha, esfregava o balcão da sua venda com um pano úmido, o rangido lento das suas costas acompanhando o tic-tac da velha caixa registradora. Aos seus 60 anos, a vida a tinha moldado como as ondas que beijavam a areia da praia em frente: resiliente, marcada, mas com uma beleza austera. Aquele sábado estava particularmente abafado, mesmo depois do sol se render à escuridão.

Do outro lado da rua, na casa pintada de um azul desbotado pelo tempo e pela umidade, morava Matheus. Um garoto magro de 17 anos, com olhos grandes e assustados que pareciam ter visto demais. Seus pais haviam morrido em um acidente de carro há dois anos, e desde então ele vivia com a tia, Dona Clarice, uma senhora que falava mais com as orações do que com as palavras. Matheus passava as noites em claro, encostado na janela, ouvindo os sussurros do vento e os sons distantes da cidade. Havia uma quietude nele que beirava o pavor, como se estivesse sempre à espera de algo.

Naquela noite, os eventos se desenrolaram de forma sutil, quase imperceptível. Um vulto ágil, tão rápido que parecia uma ilusão de ótica, deslizou pela viela atrás da venda de Dona Lúcia. Não era um homem comum. Seus movimentos eram desprovidos da rigidez humana, mais como um predador encurralando sua presa. O som abafado de algo caindo, seguido por um silêncio antinatural, foi o único prenúncio.

Dona Lúcia foi a primeira a notar. O velho cachorro vira-lata que sempre dormia na soleira da sua porta, um fiel guardião de pelos grisalhos, não latiu. Isso era um mau sinal. Ela se aproximou da porta, o coração começando a martelar no peito como um tambor frenético. A escuridão ali era densa, um manto espesso que parecia engolir qualquer luz. De repente, um grito rouco e sufocado rasgou o silêncio. Não era um grito de dor, mas de… terror absoluto.

Matheus, na sua vigília perpétua, viu. Pelo canto do olho, uma sombra se desprendeu da parede, mais escura que a própria noite. Parecia ter pernas finas e alongadas, um corpo retorcido que se movia com uma agilidade sobrenatural. Ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha, um frio que não vinha do vento, mas de algo primal. O vulto se moveu em direção à viela, e Matheus viu, por um breve instante, os olhos brilhando na escuridão – não como os de um animal, mas com uma inteligência fria e calculista.

O que aconteceu na viela ficou guardado nas sombras. Os noticiários falariam em um assalto que deu errado, em um crime bárbaro. Um homem, um trabalhador que voltava para casa, foi encontrado em estado lastimável. A crueldade era inominável, um detalhe chocante que fez a cidade suspirar e trancar suas portas mais cedo.

Mas Matheus sabia que não fora um assalto. Ele não conseguia descrever o que viu, mas sentia a presença. Algo que se alimentava da escuridão, que se escondia nos recantos esquecidos da cidade. Nos dias que se seguiram, uma onda de medo sutil percorreu a Ribeira. Pessoas evitavam as ruas à noite, os risos eram mais contidos, as portas eram trancadas com mais cuidado. Um sopro frio parecia pairar sobre tudo.

Uma semana depois, Matheus estava mais uma vez na janela. O cheiro de maresia estava mais pungente. Ele ouviu o barulho. Um farfalhar baixo, vindo de trás do seu quintal. Seu corpo congelou. Era o mesmo som, a mesma ausência de som que precedeu a noite do crime. Ele respirou fundo, sentindo o suor frio escorrer pelas têmporas. Ele não era um herói. Era apenas um garoto assustado, um garoto que viu demais, que sentiu demais o peso daquelas sombras.

Lá fora, o som se aproximava. Matheus fechou os olhos por um instante, imaginando aquelas pernas finas e retorcidas, aqueles olhos que não refletiam nenhuma emoção humana, apenas uma fome insaciável. Ele sabia que o medo era uma âncora, mas também podia ser um gatilho.

O que ele faria? Fugir? Gritar? Ou se tornaria, de alguma forma, cúmplice no silêncio? A criatura esperava. E na Ribeira, onde o dia nem sempre trazia a luz completa, a noite guardava segredos que se arrastavam e se alimentavam do que não se via. Matheus abriu os olhos novamente, a luz fraca da lua pintando o contorno do seu rosto. A sombra estava do lado de fora da janela agora, mais nítida do que nunca, mas ainda envolta em uma escuridão que desafiava a compreensão.


Por: Marina Rocha Antunes

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