O Sopro de Mandacaru

O Sopro de Mandacaru

O cheiro de terra molhada, após a garoa que teimava em cair no fim de tarde de outubro, era um conforto familiar para Lia. Era o aroma da sua infância, do quintal de terra batida da avó, do cheiro que a acompanhava nas suas caminhadas pela caatinga, antes mesmo de saber que aquele cheiro era, em parte, um lamento. Lia, com seus trinta e poucos anos, a pele curtida pelo sol forte do Nordeste, os olhos que ainda carregavam a vivacidade de quem acreditava na força da semente, era a voz que se erguia contra o cinza que se espalhava.

A fábrica, um monstro de metal e fumaça, cuspia diariamente seu veneno no rio São Francisco, o Velho Chico, que nutria a vida em tantos leitos secos. O rio, outrora azul profundo, agora tinha a cor de óleo queimado em seus contornos, e os peixes, antes fartos, rareavam como lembranças. Lia, com suas oficinas comunitárias, seus panfletos coloridos espalhados pelas feiras, suas postagens incansáveis nas redes sociais, era um grão de areia contra a maré. Um grão persistente, que machucava o olho distraído.

Sua mãe, Dona Flor, bordava em silêncio na janela, os dedos ágeis movendo a agulha em desenhos de mandacaru e juazeiro. Seus olhos, porém, não perdiam a filha, cada movimento, cada gesto de apreensão. Lia sentia o peso do olhar materno, o amor que se misturava ao medo, o desejo de protegê-la do mundo cruel que parecia engolir tudo o que era bonito.

“Eles sabem quem você é, filha”, Dona Flor disse um dia, a voz baixa, quase um sussurro. O bordado parou. Lia a olhou, o coração apertado. As ameaças eram sutis no início: comentários anônimos, e-mails com linguagem agressiva. Depois, vieram os bilhetes deixados na caixa de correio, os pneus furados do seu Fiat Uno velho, o rugido de moto que parava na frente da sua casa em horários suspeitos.

O dilema a consumia. Cada passo dado para denunciar, para mobilizar, parecia atrair uma sombra mais densa. Ela via o desespero nos olhos dos pescadores que já não encontravam sustento, a resignação dos agricultores cujas plantações morriam sob a chuva ácida. Via, principalmente, a esperança que se reacendia em cada rosto que a ouvia, que compartilhava suas marchas, que a aplaudia em praça pública. E essa esperança era o combustível que a impedia de parar.

Uma noite, a luz do poste da rua apagou. O silêncio foi perturbador, apenas rompido pelo coaxar distante de sapos. Lia estava em casa, revisando documentos para uma petição. Ouviu um barulho no portão, um arrastar metálico. O corpo gelou. Levantou-se devagar, o telefone na mão, o dedo tremendo sobre o número de emergência. A luz voltou de repente, revelando um vulto correndo para longe. No chão, perto do portão, uma caixa.

Dentro, um pequeno mandacaru em um vaso de barro. E, preso a um dos seus espinhos, um bilhete. “Ainda há tempo de plantar e colher”, dizia a letra elegante, mas fria.

Lia encarou a planta, o verde vibrante contrastando com a escuridão da noite. Sentiu o aroma da terra molhada, agora misturado a um medo palpável, mas também a uma força antiga, ancestral. A ameaça não era apenas para ela, mas para a terra que ela defendia, para o rio que ainda sangrava, para o futuro que teimava em brotar. Ela não era apenas um grão de areia. Era a semente que, mesmo pisoteada, lutava para crescer. E aquele mandacaru, símbolo de resistência em terras áridas, era um lembrete silencioso: a natureza, mesmo ferida, sempre encontraria um jeito de florescer. Lia pegou o vaso, o peso em suas mãos um lembrete do fardo e da beleza de sua luta. O que fazer agora? A pergunta pairava no ar, densa como a fumaça que a fábrica continuava a exalar.


Por: Catarina de Assis Mendonça

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