O Sopro da Tarde Quente

O Sopro da Tarde Quente

O ar grudava na pele de Helena como o pó fino que cobria tudo. Tarde quente de dezembro, mesmo ali, no limite onde a cidade se rendia à terra batida e à poeira que dançava em espirais preguiçosas. A van improvisada tossiu e parou, e o cheiro forte de desinfetante misturado ao de suor e medo invadiu o pequeno espaço. Helena desceu, sentindo o peso familiar da mochila nas costas e a inquietude que lhe era companheira fiel.

Seu uniforme, outrora branco imaculado, agora exibia manchas desbotadas de suor e o tom terroso da jornada. O posto de saúde, mais um aglomerado de barracos e lonas esfarrapadas, era um ponto de esperança frágil num mar de desolação. As escassas ferramentas, os remédios que chegavam aos poucos – tudo era contado, racionado, um ato de fé diário contra a escassez.

Dona Fátima, com os olhos marejados e o corpo curvado pela dor que não cedia, agarrou a mão de Helena. A pele enrugada e seca, as veias salientes como riachos secos, transmitiam a urgência do que precisava ser dito, mesmo que a voz embargasse. Helena apertou a mão da idosa, um gesto silencioso de reconhecimento. Sabia que Fátima não falava apenas de sua febre alta, mas da febre da alma que consumia aquele lugar.

Enquanto aplicava a injeção, Helena ouvia os murmúrios, os lamentos abafados que vinham de dentro. Um bebê chorava persistentemente, um choro que rasgava o silêncio opressivo. Crianças com feridas que, em outro lugar, seriam simples arranhões, aqui ganhavam contornos assustadores, ignoradas pelas campanhas que prometiam vacinas e curas para o resto do mundo.

Às vezes, à noite, no silêncio quebrado apenas pelo zumbido dos mosquitos e pelo som distante de tiros que pareciam ecoar de outra dimensão, Helena se pegava olhando para o céu. Tão vasto, tão indiferente. Pensava nos noticiários, nas manchetes sobre conflitos em terras distantes, em doações arrecadadas com aplausos efêmeros. E aqui, a poucos quilômetros do burburinho urbano, a vida se desfazia em sussurros, em dores contidas, em olhares que pediam socorro sem saberem para onde direcionar o apelo.

Havia o jovem Davi, com a perna ferida por estilhaços, que se recusava a chorar, a mostrar a dor. Era a dor da vergonha, da impotência, da certeza de que seu futuro seria moldado pela violência que o cercava. Helena limpava a ferida com cuidado, o cheiro metálico do sangue ainda presente, e sentia uma raiva surda borbulhar em seu peito. Raiva da omissão, da desatenção, da cruel normalidade com que o mundo parecia seguir em frente, deixando para trás as cicatrizes invisíveis e visíveis que marcavam aquele pedaço de chão.

Um dia, chegou uma remessa pequena de suprimentos. A alegria genuína no rosto das pessoas, a gratidão singela que se traduzia em olhares e sorrisos tímidos, era o combustível que a fazia continuar. Era o vislumbre de que, mesmo na indiferença global, um fio de humanidade ainda teimava em existir.

Ao fim de mais um dia exaustivo, sentada na soleira da porta improvisada, Helena observava o sol se pôr, tingindo o céu de laranjas e roxos intensos. O pó da tarde quente envolvia tudo numa aura melancólica. De repente, uma pequena mão se enroscou na sua. Era Sofia, uma menina cujos olhos profundos pareciam carregar o peso de séculos. Ela lhe estendeu uma flor seca, pequena e frágil, colhida sabe-se lá onde.

Helena pegou a flor, sentindo a aspereza das pétalas. Olhou para Sofia, para a inocência teimosa em seu rosto. E naquele gesto simples, naquele sopro de gentileza em meio à aridez, ela sentiu que a luta não era apenas dela. Era de todos aqueles que, em silêncio, continuavam a semear esperança em terra estéril, esperando que, um dia, o mundo se lembrasse de olhar para eles. O zumbido distante de um carro se aproximando quebrou o silêncio. Não sabia se era mais um enfermo, uma ajuda esperada ou um prenúncio de mais violência. A única certeza era o peso da flor seca em sua mão e a pergunta que pairava no ar: quanto tempo mais o mundo levaria para ouvir os murmúrios da tarde quente?


Por: Catarina de Assis Mendonça

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