O Sopro da Casa Velha
O cheiro de mofo e lavanda seca pairava no ar, um perfume agridoce que Lúcia conhecia desde sempre. A casa dos avós, em um bairro de casas geminadas e janelas com grades de ferro que pareciam abraços de receio, sempre foi um refúgio, mesmo em sua quietude austera. Agora, era dela. Dona Clara se fora há um mês, e o silêncio que ela deixou era um ruído constante nos ouvidos de Lúcia.
A primeira vez que aconteceu, Lúcia achou que era o cansaço acumulado. A poltrona de couro desgastada na sala, aquela onde o avô lia jornais amassados e soltava longos suspiros, estava ligeiramente fora do lugar. Uma coisa insignificante, mas a memória nítida de como a deixara na noite anterior a incomodou. Depois, a xícara de chá, esquecida na mesinha de centro, apareceu, segundos depois, de volta na cozinha, sobre a pia. Não era para ser alarmante, mas uma pontada de estranhamento se instalou em seu peito.
“Coisas de casa velha”, pensou, tentando afastar a irracionalidade. Mas as “coisas” persistiram. Um pequeno retrato de Dona Clara, guardado na gaveta da cômoda do quarto de hóspedes, apareceu sobre a escrivaninha. Sem moldura, apenas a imagem sépia de uma mulher jovem, com um sorriso contido que Lúcia nunca vira em vida. O olhar da foto parecia desafiador.
O dilema de Lúcia era um nó apertado. Por um lado, a lógica, a sanidade que gritava para descartar os eventos como coincidências e fadiga. Por outro, um medo ancestral, uma intuição que sussurrava que algo na casa não estava em paz. E com ela, uma curiosidade sombria, a necessidade de entender o que aqueles movimentos silenciosos queriam dizer.
Certa tarde, enquanto arrumava o sótão empoeirado, um pequeno caixote de madeira cedeu sob seu toque. Dentro, não havia roupas antigas ou bugigangas esquecidas, mas um caderno capa dura, de um azul desbotado, com as páginas amareladas. O nome “Clara” estava escrito a lápis na primeira página. O coração de Lúcia disparou.
As primeiras linhas eram prosaicas, anotações sobre o dia, o clima, a receita de bolo de fubá que sempre dava certo. Mas, à medida que Lúcia folheava, o tom mudava. As palavras se tornavam mais urgentes, carregadas de angústia. Havia menções a “promessas quebradas”, a “medo da verdade” e, repetidamente, o nome de um homem: “Antônio”.
De repente, a porta do sótão rangeu e se fechou com um baque surdo. Lúcia soltou um grito contido, o caderno caindo de suas mãos. Ela se virou, esperando ver um raio de sol travesso ou um ratinho aterrorizado. Nada. Apenas a escuridão familiar do sótão, agora mais densa, pesada.
O ar ficou frio. As tábuas do assoalho gemeram, como se alguém estivesse se movendo lentamente sob os pés dela. Lúcia sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A luz fraca que entrava pela claraboia mal alcançava o centro do cômodo, mas ela jurou ter visto uma sombra se alongar perto da janela.
Agarrando o caderno como um escudo, ela desceu as escadas correndo, tropeçando nos degraus. Na sala, a poltrona de couro estava de volta em seu lugar exato. Sobre a mesinha de centro, a xícara de chá, agora fria, esperava. E no chão, aos pés da poltrona, repousava uma pequena caixa de madeira entalhada, a mesma que ela vira no sótão, mas agora a tampa estava ligeiramente entreaberta.
Lúcia hesitou. Cada instinto lhe dizia para fugir, para trancar a porta e nunca mais olhar para trás. Mas o olhar frio do retrato, as palavras sussurradas do caderno, a sensação de uma presença invisível… tudo a prendia ali. Com mãos trêmulas, ela se aproximou da caixa. O que mais aquela casa guardava? Que segredos a herança de Dona Clara estava determinada a revelar, mesmo que a força de objetos mudando de lugar? O vento, lá fora, parecia soprar um lamento baixo, e a casa inteira parecia prender a respiração, esperando a resposta de Lúcia.
Por: Ricardo Soares Guedes

Deixe um comentário